21h30 – O sétimo selo (1957), Ingmar Bergman
Quando o filme começa, no séc. XIV, o cavaleiro Antonius Block (interpretado por Max von Sydow) e seu fiel escudeiro, Jöns (interpretado por Gunnar Bjornstrand), retornam a casa após dez anos nas Cruzadas e encontram o seu País devastado pela peste negra. Face a esta realidade e ao seu passado recente, o cavaleiro sente a sua fé em Deus abalada, o que lhe coloca dúvidas existenciais, o angustia e o faz sentir-se desoladamente sozinho.
Comentário de Carla Semedo (UÉ)
Não é possível falar de “O Sétimo Selo” sem
antes falar um pouco de Ingmar Bergman, pois a sua obra está intrincadamente
entrelaçada com aquilo que foi a sua vida.
Ingmar Bergman nasceu em Upsala, na Suécia, em
1918. O seu pai era um pastor luterano de moral rígida e a sua mãe, segundo o
próprio, uma mulher dominadora, com quem teve desde cedo uma relação
conflituosa. Na sua biografia “A lanterna mágica”, Bergman refere que a amava
profundamente, mas que esse amor não era recíproco.
A sua educação foi dominada por conceitos
luteranos, como pecado, confissão, castigo, perdão
e misericórdia. Muitas das suas obras irão estar inspiradas nesses temores,
como é o caso do “O Sétimo Selo”.
Já adulto, o realizador teve também uma vida
amorosa bastante conturbada: casou-se 5 vezes, para além de ter tido várias
relações extra-conjugais conhecidas, e teve 9 filhos, 3 dos quais fora destes
casamentos. Vida e cinema cruzam-se,
pois algumas destas mulheres foram atrizes que participaram nos seus filmes,
tendo algumas delas contracenado juntas, enquanto com elas mantinha relações
paralelas. Das suas relações com os filhos, refere não ter sido capaz de
estabelecer laços sólidos afetivos.
Numa
perspetiva auto-biográfica, compreende-se assim que alguns dos temas centrais das suas obras recaiam
sobre aspetos existenciais, como
a solidão, a religião, a morte, a humilhação, a infidelidade e o erotismo,
talvez como forma de exorcizar os seus demónios, de refletir sobre a sua vida e
“corrigi-la” ou trazer-lhe justiça através do cinema. Todos estes temas estão
presentes no “Sétimo Selo”. E ele aborda-os olhando para o lado psicológico das personagens, bem
como para a angústia causada pelas dúvidas religiosas materializadas nas
referências à ausência de Deus, que deixa o Ser Humano abandonado entre si e o
Diabo.
Tendo por base a hipótese auto-biográfica, será
coincidência que a mulher do cavaleiro, Karin, que ele abandonou para partir
para as cruzadas e por quem já nada sente quando regressa, tenha o mesmo nome
que a sua mãe? Ou será a “vingança” do seu alter ego para com a sua
progenitora? Karin recebe o seu marido e os amigos no castelo, cumpre o papel
esperado de uma esposa, prepara-lhes uma refeição, assegura-lhes subsistência,
mas não revela qualquer afeição, qualquer emoção, qualquer alegria (nem
tristeza) pelo seu regresso. Esperou por ele apenas porque era o seu dever,
assim como a sua mãe o criou, no cumprimento daquilo que era o seu dever.
E Mikael, o bebé do casal de artistas
circenses, tão amado, tão cuidado pelos pais, tão feliz, não será a
materialização do seu desejo de uma relação filial semelhante, que não
conseguiu estabelecer nem com a sua mãe nem com os seus 9 filhos?
É talvez essa conexão profundamente pessoal
que fez Bergman tão especialista em explorar a psique na tela - isso, e uma
recusa em se afastar de verdades desconfortáveis sobre a natureza humana. O
trabalho de Bergman é por vezes difícil de assistir, porque ele nos obriga a
enfrentar aspetos de nós mesmos sobre os quais preferimos não nos debruçar.
Realizado em 1956, “o Sétimo Selo”, tido para muitos
como o filme que representa o auge da genialidade do realizador, foi baseado
numa peça de teatro escrita pelo próprio Bergman. Nele são visíveis alguns
dualismos vividos pelo cineasta, em torno das crenças religiosas herdadas do
pai. A questão da fé e as consequências existenciais que daí decorrem são também
reflexões que Bergman extraiu do pensamento de Kierkegaard.
Um
dos muitos possíveis contributos para o sucesso deste filme, poderá advir da
época em que foi realizado: há um certo paralelismo entre a época retratada no
filme, a idade média, dizimada pela peste negra, e o momento histórico em que o
filme é realizado, 1956, poucos anos após o final da 2ª guerra mundial (1945),
com os efeitos devastadores ainda muito presentes do holocausto e da bomba
atómica: num e noutro momento, o homem é perspetivado como o responsável pelo
seu destino, pelo apocalipse final: na Idade Média, a peste e a morte são o
resultado do castigo de Deus pelas más condutas dos homens; no séc. XX, a morte
decorre também da má conduta dos homens e da perversa utilização do
conhecimento nas suas ações.
Outro
aspecto bastante marcante do filme é que ele é filmado
num preto e branco sombrio pelo então diretor de fotografia de Bergman, Gunnar
Fischer, o que reforça o dramatismo que está sempre presente.
Debruçando-nos um pouco sobre o seu conteúdo, sem querer
desvendar demasiado, o filme inicia-se e termina com citações do Livro do
Apocalipse de São João. Segundo esta escritura, na mão de Deus há um livro
selado com sete selos e a abertura de cada um destes selos implica num
malefício sobre a humanidade, mas a abertura do sétimo é o que leva
efetivamente ao fim dos tempos. Após a abertura do sétimo selo, sete anjos
recebem sete trombetas que, uma vez sopradas, uma de cada vez, iniciarão uma
série de catástrofes que prenunciarão a derrocada da humanidade.
Quando o filme começa, no séc. XIV, o cavaleiro Antonius Block (interpretado por Max von Sydow) e seu fiel escudeiro, Jöns (interpretado por Gunnar Bjornstrand), retornam a casa após dez anos nas Cruzadas e encontram o seu País devastado pela peste negra. Face a esta realidade e ao seu passado recente, o cavaleiro sente a sua fé em Deus abalada, o que lhe coloca dúvidas existenciais, o angustia e o faz sentir-se desoladamente sozinho.
A imagem mais marcante deste filme (ou pelo
menos a mais conhecida) é talvez a do cavaleiro medieval, que joga xadrez com a
morte (uma figura vestida de negro, com o rosto branco, interpretada por Bengt
Ekerot).
Existe um constante dirigir a Deus, não só de
Block, mas de muitas das personagens, que são monólogos, afirmações ou
perguntas sem resposta, pois Deus é um vazio, nunca responde, nunca se mostra,
só a sua ação se manifesta pelo castigo (a morte, a peste). O cavaleiro
Antonius Block procura respostas em Deus, respostas que justifiquem os
acontecimentos da sua vida, uma vida antes feliz, boa, e que agora, ele
percebe, não voltará mais. Mas Deus não lhe responde, só há vazio. E por isso, quer matar Deus
nele, e substituí-lo por conhecimento, em vez de fé. Mas ao mesmo tempo, não o
consegue fazer, porque essa “orfandade” de Deus lhe causa medo.
Na sua relação com a morte, a sua preocupação
é adiá-la, pelo menos o tempo suficiente para compreender o sentido da vida e,
a certa altura, fintá-la.
É um filme marcado por alternâncias entre (curtos)
momentos alegres e felizes, logo bruscamente quebrados com momentos de drama,
de castigo, como que a punir a alegria e a ousadia da esperança. Os verdadeiros
momentos de felicidade pura são poucos, muito poucos, e essa consciência existe
por parte das personagens, que afirmam a importância de os aproveitar, de
guardar esses momentos (ninguém lhos pode tirar, porque estarão sempre na
memória) e se sentem gratos por eles, porque são os momentos de excepção que
dão sentido à vida, e os pequenos interregnos no sofrimento e na dor, que
permitem suportar tudo o resto.
É
interessante também verificar que, de todas as personagens apresentadas ao
longo do filme, as únicas verdadeiramente puras, que não buscam riqueza, que não
parecem fazer da sua forma de vida uma instrumentalidade para alcançar algo,
são as personagens que representam a arte, ou não fora Bergman um artista. Uma
família, um casal de atores, Jof (Nils
Poppe), Mia (Bibi Andersson), e o seu bebé, Mikael (Tommy Karlsson) são apresentados como
pessoas puras, sem maldade, cuja felicidade reside apenas em levar a sua arte
às pessoas e em aproveitar cada momento simples de plácida felicidade que a
vida lhes traz: brincar com o seu filho e aproveitar o que a natureza lhes dá
(os morangos silvestres, o calor do sol...). Eles parecem ser o lado bom da humanidade:
quando aparecem, há luz do sol, ouvimos o chilrear dos pássaros, há sorrisos e
alegria. Ele tem visões que mais ninguém vê, visões felizes (Nossa Senhora com
o menino Jesus, caminhando e sorrindo para ele, ensinando o menino a andar).
No
travar conhecimento com esta família, encontra o cavaleiro Block um dos únicos
momentos de felicidade da sua própria existência atual, o que ele valoriza e
verbaliza, mencionando-o junto a eles, e referindo cada um dos aspetos que
fazem esse momento único. Ele refere: “Eu lembrar-me-ei
para sempre deste momento”. “O silêncio, o crepúsculo, os morangos e o leite. A
luz do entardecer sobre as faces. Mikael dormindo, a música de Jof. Vou guardar
as nossas conversas. Vou carregar esta memória nas minhas mãos, tão cuidadosamente
como um prato cheio até as bordas de leite fresco. Cuidadosamente para não
entornar. E este será um signo adequado e suficiente para mim”.
No final, Block consegue, de algum modo, ludibriar a morte,
enquanto joga xadrez com ela, permitindo a salvação desta família sem que a
morte se aperceba. Este momento deixa-o feliz e vitorioso e, de alguma forma,
parece “justificar” a sua própria morte e dar-lhe um sentido, pois a morte
tinha-lhe já dito que iria levá-lo, e aos amigos que com ele viajavam, muito em
breve.
Na hora do encontro final com a morte, Antonius Block pede,
suplica ainda a Deus que, no sítio obscuro onde está, onde tem que estar, tenha
piedade deles. E Jöns, o seu
escudeiro e, afinal, seu alter ego, diz-lhe que não há ninguém para ouvir as
suas lamentações.
A fuga da família de artistas na sua carroça, após o momento
tempestuoso do confronto da morte com o cavaleiro e seus amigos, é acompanhada
de um glorioso dia de sol e pássaros a chilrear, deixando-nos a esperança de
que a salvação e a existência de um mundo melhor ainda são possíveis e está nas
nossas mãos alcançá-las. E que a luz da vida sobreviverá sempre à escuridão da
morte.
Obs.: Esta análise é baseada na minha reflexão pessoal, não-especialista
em cinema e necessariamente “contaminada” pela minha formação académica, bem
como nalguma pesquisa em fontes diversas. Não são apresentadas as respetivas
referências porque, nunca foi meu intuito tornar este documento público.