"Falar de «O Leopardo» de Luchino
Visconti, coloca-me numa posição de confronto: como apresentar em 10min um dos
filmes da minha vida!
Poderei começar precisamente por
aqui: pelo confronto. Porque o filme é, ele próprio, uma alegoria do confronto.
Da História e da vida.
A acção, como sabemos, decorre entre
1860 e 1861, quando Garibaldi desembarca na Sicília para derrubar a monarquia
dos Bourbons de Nápoles. Um ano antes, a intervenção francesa ao lado do reino
do Piemonte, forçou a retirada do império austríaco de parte da Itália do
Centro e Norte. O filme traduz, assim, o fim de um mundo – a aristocracia rural
siciliana (representada pelo príncipe Frabrizio Salina) – e a traição das
esperanças do Risorgimento, pois a
Itália nova apoiar-se-á na velha nobreza contra os garibaldinos.
O filme baseia-se no romance homónimo
de Tomasi de Lampedusa, publicado em 1958 pela Feltrinelli poucos meses após a
morte do autor, tendo alcançado um apreciável sucesso.
Visconti, ele próprio descendente de
uma antiga família aristocrática de Milão, duque de Mondrone, entusiasma-se com
a obra e interpreta-a de um modo magistral. Segue o livro, respeitando as partes
essenciais do romance, mas introduzindo passagens em que o tempo real da
narrativa é transformado num tempo imaginário. Enquanto na obra de Lampedusa a
acção decorre entre 1860 e 1910, sobrevivendo à morte do príncipe, a versão de
Visconti está condensada em 2 anos.
O confronto da História é sublinhado ainda
por confrontos directos: Tancredi (o sobrinho) e o príncipe, Angelica e
Concetta, a velha aristocracia e a burguesia campesina endinheirada
(personificada por D. Calogero). Confrontos narrados na linguagem
cinematográfica única de Luchino, um homem culto, inteligente, sensível e com
uma espessura operática singular.
O filme é bem mais do que uma boa
história transposta para o cinema: baseia-se num livro admirável, mas
acrescenta-lhe valor. Não um valor efémero, volátil como os costumes; mas uma
essência perene que só alguns conseguem materializar. Por isso, «O Leopardo» é
um verdadeiro monumento da 7ª Arte!
Há 3 momentos piramidais no filme e
que suportam o seu conteúdo ideológico: o diálogo entre o príncipe e Don Ciccio
durante a jornada de caça, a conversa entre Salina e Chevalley, o emissário do
reino encarregue de o convidar para senador e o baile no palácio Ponteleone,
que ocupa boa parte do filme e traduz toda a sua essência. Fabrizio encara-o
como uma despedida do seu tempo, um derradeiro adeus tratado por Visconti de um
modo sublime: curva-se perante a morte, respeita-a, mas é como um verdadeiro
Príncipe que sai de cena, seguindo por uma viela de Palermo. Como dizia Burt
Lancaster, «o príncipe recebe a morte quase com alívio, porque não está à
vontade em nenhum dos 2 mundos, em nenhuma das sociedades que conheceu: nem
entre a sua classe, que acha fútil e estúpida, nem entre a nova classe
dominante que considera vulgar. Apesar de todo o seu amor pelo sobrinho, sabe
que este não passa afinal de um arrivista, um bonitão, um chatinho cúpido e
ambicioso».
Uma palavra final para Burt
Lancarter, um actor razoavelmente injustiçado. Mas, na verdade, não imaginamos
o príncipe de Salina representado por outro! Mesmo quando sabemos que,
inicialmente, o papel era para ser atribuído a Laurence Olivier. Burt
entregou-se ao personagem e conferiu-lhe a carácter majestático que se impunha.
Convenceu Luchino, ficaram amigos e, mais tarde, em 1974, participaria em
Violência e Paixão, o penúltimo filme de Visconti e, de certo modo, um
testemunho da sua própria existência.
Em síntese, O Leopardo pertence por
direito próprio à categoria de filmes que nos marcam de um modo indelével. Como
as obras deste Ciclo e outras que, por certo se sucederão. Neste filme, os
personagens são simultaneamente intérpretes da história e narradores que nos
convocam para interpretações da História, ou antes do fim de uma certa era.
Nino Rota cria uma banda sonora
ajustada ao filme. Como sempre o fez. Com Fellini, por exemplo. Mas esta já
será uma outra história…"
João E. Rabaça, Março 2017