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Também de 63 é este filme, como o de ontem, Il Gattopardo. Os anos 60 cinematográficos especializaram-se em malaise, em mal-estar difuso e espesso - e é curioso, porque coincidem com a vertente ascendente dos 'gloriosos trinta' [anos de afluência, bem-estar, expansão] do nosso descontentamento. A historicidade de O leopardo, de meticulosa reconstituição cénica, não nos transporta 'para lá', para a Sicília dourada do príncipe melancólico, observador do Tempo puro: estamos a lê-la inteirinha no nosso presente, como um rebatimento dessa viragem garibaldina dos tempos, no Ottocento, sobre qualquer presente actual em geral - ou, em particular, sobre o nosso: sujeitos ao Tempo, somos sempre seres de transição entre-dois, e a História é menos o encaixe de uma narrativa bem arrumada do que a modalidade de uma constante impertença à existência - aquilo que os outros cineastas de Sicília!, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, filmaram também sob a designação inquieta de Trop tôt, trop tard. Mas é por essas datas que o pesadelo existencial mais se debruça da 'ascensão' para a sua vertigem, tal como o Hitchcock da semana passada (1958) também já testemunhara; e até desse ponto de vista (passe o jogo de palavras) a sua célebre invenção técnico-metafísica - recuo da câmara em simultâneo com zoom in - se torna marca d' época, ao mesmo tempo que signo condensador do seu gesto-padrão dominante: o beco vertical de uma tontura agoniada pendurada sobre o mundo da vida.
A tontura de Fuller, foi ele tê-la para dentro de um manicómio, beco longitudinal em forma de 'corredor' - quer dizer, em forma de uma galeria de personagens que declinam as formas-tipo profundas de uma patologia geral americana.
Sem amolecer um segundo nalguma verosimilhança aproximada, o filme troca-a pela implacável exactidão da parábola. O seu grande achado está na maneira como leva a trocar as leituras da epígrafe de Tucídides - “Prius dementat Jupiter quis perdere vult” - por um processo de interpretação, não directo, mas inverso.
Se a primeira leitura faz da frase o exergo para o destino individual do infiltrado (o jornalista que se faz passar por louco para obter a sua cache, a história de um assassinato cheio de 'implicações'), significando então que Júpiter selecciona aquele que tenciona perder, dementando-o, é este mesmo destino que conduz à leitura da frase como um enunciado geral sobre a América - histórico-nacional: ‘aquele[s]’ [que Júpiter quer perder] é, agora, a nação por inteiro: o espírito americano, sintetizado e condensado no pequeno grupo de conspiradores que subordinam tudo a um único fim, que os aprisiona a todos numa camisa de forças, numa monomania finalmente reduzida à sua ossada descarnada minimal: ‘who killed Sloan?’.
Porque a insistência maníaca ‘who killed Sloan?’ revela, quando se torna demente, que já o era: que já representava uma forma mental geral nacional, um tipo de acção expeditiva caracteristicamente americana - a perseverança pragmatista. Agora que se viu que o jornalista, que representa a América, se junta a toda uma galeria das formas de demência americana, o dito de Tucídides vale para a nação como tal, que está perdida na pessoa do jornalista (é quando o seu destino de louco singular transporta o da loucura colectiva): aquelas nações, aqueles povos, que Júpiter quer perder, primeiro dementa-as: todos os casos em redor do jornalista formam o caleidoscópio do respectivo testemunho. E é isso a parábola: quando o mais singular dos destinos compele a uma interpretação universal, inclusive uma frase que começara por remeter ela própria para um caso singular, e mesmo seleccionado.
As 3 testemunhas ‘do assassínio de Sloan’ são 3 testemunhos ‘por amostragem representativa’ da América, 3 histórias de vida que compendiam a das taras da nação, e cujas proporcionalidades da respectiva loucura são em si mesmas a sua própria decifração psicanalítica-social: o confederado (comunista) hiper-patriótico, o físico nuclear regredido à infância, o negro do ‘Kyklos’, enunciador literal da demência incompossível do discurso racista como tal (como veremos quando virmos o filme, não se trata apenas da contradição entre enunciado e enunciador, quando o negro apropria e emite o discurso racista contra os negros - mas, através desta, a contradição do próprio enunciado em si mesmo consigo próprio; como?: através do seu patente excesso em relação às suas próprias condições de enunciação, através da impossibilidade flagrante da sua universalização humana). É neste triplo anel que a monomania pessoal do jornalista se revela monomania patológica do sistema.
Antes do Ninho de Cucos, antes, muito antes, do grande Cuco eleitoral da pós-verdade (quer dizer: estruturalmente, ao mesmo tempo), vinde ver, vinde ver, como se pode acertar nas sondagens de 2020 vendo cinema de 1960. Anacrónicos, são os cordeiros sacrificiais (em baba e pasmo) das 'actualidades'.
jMM