domingo, 10 de setembro de 2023
Cinescrita
Reflexão de JMM após visionamento do díptico
".....É uma ocasião rara e preciosa, a de coincidirem (com a futura capital europeia da cultura, embora todos os sinais indiquem que ela, a cidade universitária de Évora, é já plena e actualmente essas três coisas: europeia, cultural e capital. Que sinais? Por exemplo, a meia dúzia de espectadores que vão ao auditório engrossar os recordes de bilheteira e de saúde cinéfila do prodigioso verão português sob o signo barbenheimer), a de coincidirem, dizia, dois criadores cinematográficos em não menos de duas sessões em dias consecutivos, e envolvidos de várias maneiras em empreendimentos de co-criação.
No caso do filme que já passou, como co-realizadores e co-participantes; no caso do filme de sexta-feira, Rita Azevedo Gomes como realizadora e Pierre Léon como actor.
O leque abrangido pelo díptico no seu conjunto é vastíssimo: demora-se nas artes e na filosofia, mas conversadas desde a vida nos terraços marítimos e na memória dos poemas que interrogam a existência, desde o seu grande fundo - "de onde veio tudo?" - aos gestos que teimam em inscrever, vacilante, o sentido. No filme 'dos esqueletos', escutou-se o acto de pensar de Jean-Louis Schefer no seu acontecimento ou exercício sem premeditação, seguindo no rasto enigmático dessas obscuras superfícies paradoxais (as da imagem pictográfica ou pictórica), que vêm desde o antiquíssimo emaranhado intencional das figuras sobrepostas de Foz Côa, e passam por um certo Fragonard no Museu Gulbenkian, um certo Bosch (dois, na verdade) no Museu Nacional de Arte Antiga, para se deixarem intrigar pelos enigmas das famosas Danças Macabras que esconjuram, na viragem do medievo para a modernidade, o terror da Peste Negra de um ou dois séculos antes. (Faltou aí La danse, com que Picasso responde, desde a Sombra e o Esqueleto, ao arcadismo enfático e leve, sempre mais vegetal do que carnal ou ósseo, de Matisse...). Ou a Totentanz de Liszt. Mas não se pode ter tudo...).
Esse rasto, para Schefer, é enigmático de duas maneiras, muito próprias da sua visão da vida e da arte, em seu entrelaçamento: de que vida e de que mundo surgem esses estranhos arranjos figurais sobre a rocha, a tela, a parede (mas sem insistir em qualquer teoria genética, princípio de 'expressividade' ou de mimese; não: arrancando à vista desarmada do obscuro da vida directamente ao obscuro do traço e da mancha). Isto a montante da pintura. E depois, a jusante, o seu credo estético: o quadro é a relação dele à 'escrita que o escreve', 'desfaz-se em escrita'. O que Schefer tem a dizer sobre cada obra nunca é geral nem teórico nem previamente estrutural: escuta o dizer do quadro, e responde-lhe. É assim que o ouvimos atónitos a reparar em como as árvores muito escuras e absolutamente descomunais de certa paisagem (a Grande Natureza, que no sec. XVIII de Fragonard estava prestes a desaparecer para dar lugar ao 'ordenamento do território') são massas volumétricas tão carregadas de um dentro, que gemem cavidades oculares mais escuras ainda, impenetráveis, mas que toda essa mole assenta 'em ar e água', numa imponderabilidade da matéria, a do regato que corre paralelo ao plano do quadro; ou que as danças macabras (dos esqueletos, com os vivos que levam pela mão) se dão numa indistinção entre dimensões, semelhante àquela madrugada descrita por Virginia Woolf em que na névoa sem horizonte céu e mar são ainda uma dobra um do outro...
Estes estranhos dizeres fazem, em Schefer, as vezes da história da arte, da filosofia estética, ou de qualquer metodologia ou epistemologia guias de leitura ou interpretação. Schefer não lê - escreve. Percebeu que a imagem não é nem linguagem nem mudez, mas o início da 'sua escrita'. Isto mesmo o reconheceram Barthes (em "Será a pintura uma linguagem?", a que responde com Schefer: sim, mas não da maneira de que estão à espera) e Deleuze, que passa brevemente, em Cinéma-2, por Schefer, para extrair conclusão idêntica: a imagem cinematográfica não está articulada linguisticamente, mas é por isso mesmo tão mais produtora de reacção discursiva a seu respeito (mais propriamente, da reacção do sentido verbal ao sentido não-verbal), pelo que o cinema fala, e imenso - mas só depois. Numa inspiração toda proustiana, enfim, podemos encontrar na obra de Jean-Louis Schefer títulos e páginas absolutamente assombrosos, que nos permitem perceber o que quer afinal dizer o teorema tão rebarbativo da 'escrita do quadro' (dado que o que se escreve sobre um quadro não é um quadro, e que os quadros, da parte deles, não escrevem...): quando lemos as páginas de Schefer sobre tais ou tais telas de Chardin (na pequena monografia que dedica a esse crepúsculo zen das contemplações sem sujeito), estamos a ler pintura. Estamos não só a ler um quadro, mas a ler (e a ler 'picturalmente') o que nele é pintura (e não, por hipótese, semiologia, iconografia). Do mesmo modo, quando lemos o Mahler, de Adorno, estamos a ler sinfonias, a ouvir sonoramente o seu sentido. Inversão, afinal, da passagem de Proust que tanto impressionou Merleau-Ponty: só escutar Wagner revela ideativamente 'a essência do amor' - o que quer dizer, não apenas que só a música a exprime ou a revela, mas que esse exprimido ou revelado continua, também ele, a ser musicalmente música, e não 'significação'. Há uma certa escrita que não é verbo, é pintura, ou música: lemos significante e, em vez de compreendermos significado, vemos quadro, ou ouvimos Mahler.
Bom, mas para além disso, também muito se fala, em cinema - sobre cinema, sobre o amor, sobre a vida, sobre as artes, sobre música. A imagem cinematográfica bem pode 'falar, mas só depois', como subtilizávamos; que, nos filmes, se fala pelos cotovelos muito antes disso. Ao ponto de haver mesmo filmes 'da fala' e cineastas do discursivo, do literário, possessos das (aparentemente redundantes) imagens de textualidade (de 'de la textualité', como se diria em francês). É o caso do realizador da felicidade perplexamente palavrosa, Éric Rohmer. E mais: não é apenas um realizador que faz literatura e filosofia em filme (o que não é bem o mesmo que filmes de literatura ou de filosofia), mas que, directamente via filme, ou por intermédio daquelas, inclui no âmbito cinemático também a pintura, a arquitectura, a música, e até os banhos de sol nas praias bretãs. É dele a exegese definitiva de Shakespeare, Kierkegaard e Pascal, no mais bressoniano e dreyeriano dos filmes (mas da mais rohmeriana das maneiras), o seu "Conte d'Hiver".
O filme de Pierre Léon sobre a única peça teatral de Rohmer (e quão teatral - mas para a câmara, para cinema - é Rita Durão nas suas contracenas, como se a estivéssemos a ver saída, mas agora em francês, do palco da Cornucópia...) faz jus a essa 'cidade das artes' celebrada pela finura rohmeriana. Para sabermos até que ponto a música toca o fundo da existência e compromete o sentido de tudo, nada melhor do que seguirmos o Par rohmeriano, esse veículo que ele escolhe, mais do que 'o sujeito', para fazer em cinema a filosofia que profissionalmente preteriu.
O grande segredo de Rohmer, aqui retomado, não é tanto o da 'intermedialidade' ou o do 'diálogo das artes', mas o de entrelaçar o pensamento com uma coisa diferente do que o que a dialogia ensinava desde Sócrates: com uma dança nupcial do desejo, realizando assim o escopo do "Symposium" - o pleno Eros do pensamento. Não há nunca apenas 'a música', 'a filosofia', 'a vida', 'o pensador': há um homem, uma mulher, e, então, que música, as filosofias, não 'a vida' mas a sua simples (e mais difícil) visita... Um filme........."
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