27 de Janeiro, sexta-feira
21h30 – ‘História Permanente do Cinema’: O pagador de promessas – Anselmo Duarte (1962)
Valia a pena alinhar taco o a taco o documentário de Catarina Alves Costa de 94 para a RTP, Senhora Aparecida, e o filme de Anselmo Duarte sobre o livro de Dias Gomes.
"Desde 1993 que não se realiza a procissão dos caixões nas festas da Senhora Aparecida", lê-se em jeito de epitáfio no final do filme de Alves Costa.
A procissão dos caixões perfazia o mui cristão e cristianíssimo pagamento de promessas à Senhora, embarcando o agraciado, desde bebés a velhotes (fosse o próprio o promissor, ou algum familiar de fés revoltosas), num caixão imaculado e destapado ao céu que subia pelo meio do povo - com a banda dos bombeiros a dar nos bombos e a puxar pelo comboio de gente - a ladeira que vai à igreja.
Por quatro motivos o padre novo, e novo padre, se encarniçou a combater o costume e o sagrado elo: para desviar os quatro contos de réis do aluguer do caixão para as Misericórdias; por participar também ele na procissão (debaixo de um palanquim, paramentado de aveludados cor de nácar e acolitado por provavelmente dois ladrões trajados de igual), e lhe repugnar o que há de excessivamente cristão e de excessivamente pagão ao mesmo tempo, no se ir assim, dentro de um caixão de mortos, da vida até à vida; por adivinhar nesta extrema imitatio Christi um perigoso competidor da fé morta das igrejas; por não perceber absolutamente nada de cristianismo - ou então absolutamente tudo: que é coisa de padres, e não de deus.
De pouco serviu a sanha de todos contra o cura, a quem chamavam 'senhor abade' (e tinha pinta de o ir sendo o melhor que pudesse nesse portugal aldeão dos nortes, o nosso jovem trintão mal passado nos exames do seminário, e facilmente derrotado na erística com o primeiro popular convicto que lhe aparecesse diante). De pouco serviu o desfazer-se do enleio mentido a que o documentário nos põe a assistir, e que o padre urde junto deste e daquele, a tentar demovê-los, e de pouco serve a convicção com que todos os pagadores de promessas se deitam na morte da qual se salvaram, mistério da cruz. De pouco serviu o sentido inalienável e transcendente da promessa, o escândalo da fé (a última coisa que o padre seria capaz de compreender, é claro): o documentário documenta o último ano da procissão e a subsequente normalização eclesiástica, espécie de cristianismo moderno de bom tom politicamente correcto.
Neste filme como no de Duarte fica patente que o inimigo incompreensível e disruptivo que causa verdadeiro pavor à madre igreja continua a ser cristo - seja ele o perigoso jesus dos pobres, seja ele o deus tétrico que bebe o cálice e que promete mudar a metafísica através da sua própria carne.
da Folha de Sala para esta sessão
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