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domingo, 22 de janeiro de 2017

cinema de quinta

26 de Janeiro, quinta-feira  21h30  asm - auditório soror mariana

‘História Permanente do Cinema’: Peeping Tom de  Michael Powell 







da folha da sala : Foram Paul Virilio e Friedrich Kittler que mais exploraram a dupla natureza do 'shot' (seja tiro, instantâneo fotográfico, ou extralongo e agonizante plano cinematográfico) e o maniqueísmo oculto do cinema: "A história da câmara de filmar coincide com a história das armas automáticas. O transporte de imagens repete meramente o transporte de balas. Para focar e fixar objectos em movimento através do espaço (...) há dois procedimentos: disparar e filmar. Na origem do cinema encontra-se a morte mecanizada" *. É a arte desse dois-em-um que o filme doloroso de Powell revisita e tematiza, colocando um acento no 'e' e revertendo o trauma: "disparar é filmar", porque filmar é disparar.
Nos fotogramas acima - shot reverse shot, campo e contracampo, em que 'o outro lado' faz de contracampo irrevogável e de fundo absoluto e neântico da existência - essa pulsão de morte do acto violentíssimo de filmar fica patente: a estrutura-mestra da narratividade cinematográfica encontra-se condensada neste segredo mínimo de eros: unidos pela reversibilidade da imagem que se desdobra malevolamente de consigo própria, Ele mata e Ela morre. 
O filme do autor de 'A Matter of Life and Death' (1946) ou de 'The Read Shoes' (1948), e ainda de 'The Life and Death of Colonel Blimp' (1943) - Michael Powell / Emeric Pressburger - revolve todo ele em torno deste complexo erothanático, com paragem em Viena e no trauma edipiano de infância do protagonista homicida como pretexto para uma questionação sobre a meontologia da imagem (a imagem mata porque "ela diz que é morte / aquilo onde estou") através da encenação da auto-reflexividade do medium (o acto do protagonista replica o do realizador, e não é por acaso que nos quatro filmes referidos este mata diegeticamente, medialmente e simbolicamente de todas as maneiras os seus personagens, através do sacrifício subtil do próprio actor tornado 'reprodutibilidade técnica' de si próprio).
Essa segunda história da equação, contam-na Balzac e Bazin (e Nadar, e Charles Sanders Peirce). Na primeira parte da história - "disparar é filmar" -, encontrávamos o ofício bélico na origem do 'kino-olho'; nesta segunda parte  - filmar é disparar -  percebemos que o kino-olho é ele próprio uma origem mortuária primeira e não-derivada. Ainda um outro autor, Régis Debray, no seu monumental tratado 'Vie et mort de l'image', lembra essa origem funerária de todo o duplo, que é máscara e imago severa do caput mortuum antes de ser o duplicatum do rosto vivo. E, se a ontologia da imagem fotográfica (Nadar, Peirce, Bazin, Pasolini) é a do signo indicial, quer dizer, aquele que é produzido fisicamente pelo seu referente, cujo rasto ou resto nele fica impresso (a imagem é a da coisa), numa outra acentuação hermenêutica deste fenómeno um Balzac repara que a imagem é tanto 'da' coisa, que 'lhe rouba a alma', que a captura mortalmente ao alvejá-la na sua mira(da) vinculativa. E podemos lembrar que toda a imagem fotográfica passa pelo seu negativo antes de ser 'revelada', seja esse negativo o inverso pelicular sombrio do processo dito analógico, seja o nada ou virtualização numérica do processo dito digital.
Perante estes inquietantes pactos ontológicos da imagem, a historieta regressiva do protagonista (a neurose assassina regressa compulsivamente à infância paterna/materna deste edipiano extremo que mata a mãe repetidamente e que o filma, quer dizer, que (re)vive mortalmente essa morte) conduz ao regresso arqueológico do cinema ao seu pecado original, a fotografia. A sequência final alucinante, entre o cinemático e o fotográfico, sob o espectro da metralhadora de luz instalada no estúdio (recesso do inconsciente e do subconsciente deste nosso peeping tom), mostra ao contrário como o movimento nasce da imobilidade.
Ou, talvez, como a imobilidade nasce do movimento e do tempo. Foi Ingmar Bergman quem, intermedialmente através da peça de teatro de Per Olov Enquist, revisitou, no telefilme de 2000, Bildmakarna, o cinema de Victor Sjöström, a literatura de Selma Lagerlöf e o mistério da imagem viva e da imagem morta, da imagem dos vivos e da imagem dos mortos, e com esse Bergman e com o Bergman do prólogo de Persona, que passa da morgue e da animação ao sortilégio do cinematógrafo e ao primado do cinema (uma vez mais, primado também sobre o teatro, sobre a mudez da actriz, sobre a 'nadidade' ou 'ninguém' da máscara pessoal, que é o primado horrendo e obsceno da imagem do monge que arde 'na televisão' em protesto contra a guerra do Vietnam), talvez devêssemos dizer, não só que é preciso um cinema para pôr em acontecimento uma fotografia, como dizermos, com o Solaris de Tarkovsky e com Bergson e Deleuze, que o universo é a máquina absoluta de produção de imagens e o seu próprio cinema de si mesmo.

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