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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

CineSOIR


Resultado de imagem para frankie filme

Quarta,  26/2

asm - auditório soror mariana (évora)

18h00 e 21h30



Numa transfiguração essencialmente devida ao emolduramento como extracção de espaço-tempo – por mais vasto que seja o panorama enquadrado –, a Sintra cinematográfica prolonga o efeito de vila encantada no tempo que a Sintra real detém enquanto enclave e arroubo de um tempo outro. Irreconhecível mesmo quando os lugares são identificáveis, esta outra Sintra outra (mas não só ela, a Lisboa cinematográfica, por exemplo, acompanha-a também nessa fenomenologia do irreal, quando por exemplo debaixo da Rua do Alecrim Bauchau encontra Samuel Fuller num bar que existe e não existe) produz uma suspensão do tempo e de suas sequências cronológicas, do mesmo modo que os espaços, tornados atópicos e irrelatos, suprimem neles mesmos localidade e direcção e resultam num plasma espacial puramente cinemático. Foi assim com Wenders e Zulawski, é assim com Ira Sachs (e com Isabelle Hupert, que vocaliza, a dado passo, na estrada ás curvas, essa mesma perda de direcção e de localização na serra ‘da lua’).

Referimo-nos à grande Sintra, naturalmente, que vai das Azenhas quase ao autódromo, uma região facilmente de Narnia mesmo no mundo real, toda cheia de dobras improváveis de espaço e de recantos de tempo coagulado, um arabesco fora de época que começa na vegetação e continua na pedra construída; e, quando o cinema abole os últimos encadeamentos que permitiam ainda organizar esse espaço e mantê-lo real para o perdido deambulante da região sintrense, é o tempo que fica em suspenso e sem porquê – um estado de espírito que se nos comunica directamente do entorno. É o que – após as elipses anómicas nos episódios das vidas dos casais, todos o casais, que sofrem a cesura de cronos (ou a infligem) nos seus destinos –, é o que sucede no colossal e já célebre e canonizado último plano 'turneriano' do filme, no desarrazoado movimento e contramovimento dos personagens naquele espaço-qualquer: tudo neles é hesitação e acaso, vacilação e periclitância, sem-propósito e desconforto, tudo é a meio e fica a meio, e a retirada (literalmente: antes de tempo) do esparso grupo consolida essa ontologia de um tempo que nunca coincide com o(s) seu(s) próprio(s) momento(s).
No caso, o ocaso: e, se há uma leitura psíquica da cena e do gesto – a moribunda não quer assistir à sua própria morte, e, à medida que a estrada reverberante do poente mais se intensifica sobre o oceano da tela e da imagem e o tempo corre para uma sua marca decisiva, Frankie, que ali convocara todos para uma contemplação de despedida, recusa o tópico proposto e foge-lhe; e uma leitura dramática e cénica: ela exime-se ao destino, contrariando o movimento da natureza no palco mesmo que é o desta, adiantando-se ao óbito solar; é sobretudo a leitura ontológico-estrutural que melhor dá conta do verdadeiro tema do filme (que continua a ser o estado das coisas): não se vai morrer no tempo nem este vai chegar ao fim, é o próprio tempo que é a morte, e nele e nela estamos. O tempo não é uma linha, mas o corte dela num aparecimento que desaparece, e o cinema é o corte desse corte, o tempo puro que nem com o seu próprio escoamento coincide.

Por um instante o Momento Musical (sempre terminal, como todo o Schubert desde Gretchen am Spinnraden) reúne falsamente no seu caloroso nostalgismo da vida perdida os personagens num propósito e num sentido (aquele mesmo que Frankie busca para todos precisamente por intermédio dessa música, primeiro entoada, depois tocada ao piano, finalmente tornando-se a esfera musical extradiegética que tudo benignamente vem envolver de uma felicidade magoada schubertiana e única), doando-lhes o elo da reconciliação entre eles e o mundo, nesse encontro a sós de uns e outro, à maneira de um distante Kaspar Friedrich. E falsamente, porque é irreconciliados (profundamente temporais, como vimos) que todos permanecerão, fugindo do poente, fugindo do mundo, fugindo da música, que se apaga antes da imagem.

E que, editada pelo realizador, foge aqui de si própria. Com efeito, se bem que Schubert seja o compositor das despedidas, desse entre-dois entre a morte e a vida (de que um Bergman faz tão bom uso) que não pertence a nenhuma delas, o Momento Musical escolhido contém uma secção de veemente revolta que o trecho escolhido, porém, nunca atinge. O realizador, ao contrário do compositor, prefere ficar-se com o inexorável – o Mundo – retirando a voz do Sujeito. De tal maneira que percebemos, por último, que, nessa secção intermédia entre Sintra e o real, entre o tempo e o seu corte, os casais e a sua cesura, os lugares e a sua atopia, entre a vida e a morte, nessa suspensão sintrense em que tudo entra em descompasso, não há já sequer uma Frankie a fazer a travessia, mas apenas a sombra de uma Frankie que, como todos os demais, já desapareceu na paisagem do mundo, e se extingue agora da imagem para fora, após esse breve atordoado flutuar num limbo que nunca cessa de lembrar Sintra.

jMM

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