18 de Maio, quinta-feira
21h30 no asm - auditório soror mariana
Os Amantes Crucificados (1954), Kenji Mizoguchi
- Apresentação e comentário: José Manuel Martins (UÉ)
Crucificados, sim: mas um ao outro, ou ao Amor - de cujo mistério o filme sabe tanto como nós, ou como os teólogos paulinos: assistir a como a mais pequena probabilidade do universo está para lá da cruz e do seu triângulo oculto: de vida, morte e ressurreição.
A cruz aqui é japonesa, destituída de símbolo, e nela nenhuma Significação é investida, fosse a da plenificação do amor na pulsão absoluta da morte (Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, por vias de Freud ou de Bataille), fosse a do grande jogo da transcendência: a permuta crística de pecado por inocência, e de morte (e vida) por ressurreição. Nos passos da cruz finais perfaz o filme, sim, a sua intransitividade: a serenidade intangível, e a alegria ('espinozista') de uma imanência que se perfez e que doravante nada poderá destituir. Por isso, no filme, há 'os amantes', não o 'crucificados' - muito menos a Crucificação -, e o título original é outro, e imperturbado: 'Um conto de Chikamatsu'.
Claro que traduzido para descritivo dramático - dizendo boçalmente quem entra no conto e o que é que lhes acontece: e pelos vistos até o cristianismo lhes acontece... -, na distribuição portuguesa da película. Nessa senda, Bénard da Costa elevou ainda mais do que o habitual os superlativos hiperbólicos, que multiplica a respeito deste filme:
- este seria, então, o filme da Paixão, do amour fou, não menor no Cristo do que neste casal em fuga, tão modernamente;
- conteria "o plano mais intenso da história do cinema" (a luz da Graça que se derrama de uma janela 'pela última vez' quando eles passam de noite e mergulham na errância sem regresso: mas Bénard não repara que essa luz era apenas a da falsa Graça, visível, que os amantes trocam por outra, porque a luz da Graça é sempre primeira;
- em suma, "um dos cinco ou seis maiores filmes da história do cinema, talvez até uma das cinco ou seis obras maiores da história da criação artística" - retórica que, convenhamos, e até por deixar de foraFountain, de Duchamp, entra no rol das hiper-hipérboles.
O que decerto se explicará pelas alegações, por parte do mestre, de que não pode deixar de o ver, ao filme, 'desde aqui' - quer dizer, a partir do cristianismo, e da dupla devoção pessoal que este lhe permite conjugar, a religiosa e a cinemática - : o amour fou é literário, francês, deliciosamente profano e solenemente cinematográfico: e fazer dele uma imitação de Cristo, o mais louco dos amorosos da insondável dádiva sacrificial, é sem dúvida uma tentação dos diabos. Daí que Bénard reforce ainda a posição, raciocinando que, se o dramaturgo do século XVII não conheceria a simbólica da Cruz, o taumaturgo do século XX, Mizoguchi, não poderia deixar de a incorporar na ressonância dos harmónicos culturais que necessariamente presidem à recepção contemporânea mundializada de Os amantes... . Donde, uma estranha universalização transhistórica da cruz do martírio elevada a instrumento redentorial.
Dilema hermenêutico ou cruz das interpretações, então: não conseguir ver ['Um conto de Chikamatsu'] a partir do Japão e da mundividência nipónica; muito menos desde o respectivo século XVII; e também não poder deixar de ver ['Os amantes crucificados', título assim rezado em todas as línguas europeias, excepto na Alemanha] a partir do ocidente cristão e contemporâneo, com o qual entretanto a cultura global a que Mizoguchi pertence se viria encontrar naturalmente, resolvendo a cruz dos anacronismos e a escapatória da 'fusão de horizontes'.
Mas ninguém lhe pedia tanto, ao nosso intérprete: nem se lhe pede a projecção arquetípica da cultura ocidental, nem que veja o filme a partir da inacessível cultura nipónica: basta ver o filme a partir do filme, ver o que lá está: e, o que lá está, é, não a Paixão, mas a impassibilidade.
Não a crucificação, mas em vez dela. É da cruz, e de alguma lúgubre solução de ressurreição, que estes amantes se salvam.
Não, a cruz final não é "a suprema das elipses do maior dos autores delas" (os amantes não serão mostrados crucificados), nem sequer um cristianismo retrogradado, em que a deposição, o túmulo vazio e a ascensão acontecessem antes - iluminativamente, durante 'os passos da cruz'. Precisamente, tudo nesta película acontece, mais do que 'antes da' crucificação, 'antes da' morte, 'antes da' ressurreição - em vez delas todas.
A cruz não é uma elipse sublime (de uma cena numa montagem, de uma cultura noutra), é simplesmente um off narrativo atirado fora pelos amantes, pelo Japão, e pelo realizador, que quer muito simplesmente dizer: estes, nunca serão 'crucificados'. E nunca nós os ouviremos dizer - se for para o ecrã, e não para outro lado, que estivermos a olhar, sem precisarmos de 'ver' - "a Minha alma está numa tristeza de morte", ou "afasta de Mim este cálice", ou "faça-se a Tua vontade". Precisamente por ser um filme dado ao mundo em 1954. Que convida, não a vê-lo em função do cristianismo, mas em rever o cristianismo em função dele: afinal, neste palco de um outro teatro, escrito no 'Japão feudal' para marionetas e filmado pelas marionetas no Japão moderno, até o prop master foi poupado à 'cruz'.
Que sim, está lá, como uma punição mortal, face à qual toma lugar uma transfiguração que afrontara já a morte (no lago, cena par, nos dois fotogramas acima); e sim, que é 'em morte' que permanece em vida (quer dizer, em estado de 'ressurreição'): mas, significativamente, essa salvação na mais impassível das serenidades dá-se independentemente do facto, e mesmo até da ameaça, de punição e de martírio, de 'testemunho'; mesmo se, sobre o dorso esponsal de um jumento de Chagall que os ala, é a sombra da cruz ao alto que se depõe, e se é desde essa sombra que a luz neles jorra. Porque a prolepse não poderia ser aqui mais imperiosa: o absoluto deles não precisa do outro para nada. Deste lado da ressurreição* sempre foi o mais difícil.
* referimo-nos, naturalmente, ao título do filme de Joaquim Sapinho, já aqui apresentado pelo Cinema-fora-dos Leões.
Kenji Mizoguchi (1898 — 1956)
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