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domingo, 10 de agosto de 2014

cine - palestina

em cartaz

"..que Abu-Assad faz é algo muito semelhante ao 'Caçador', de Cimino: 'one shot!': o rigor inflexível de saber dar um só tiro, quando, como, a quem  - em vez de andar aos tiros. 
De maneira que o realizador constrói o filme inteiro para produzir um único efeito e dar um único tiro, obtendo um único efeito e proferindo um só statement:  - todo o filme se destina a pronunciar esse statement, e nada mais, numa viragem política inabalável, absoluta, da fita fílmica. 
O tipo de viragem que é mais radical, da parte de um moderado, do que duas Intifadas à desfilada orquestradas pelas Brigadas. E que envia a Israel uma mensagem muito mais clara, muito mais total, muito mais unívoca e inconfundível. Essa mensagem é uma bala na cabeça, bem entendido, mas fazer com que um filme inteiro meandre e serpenteie e se espreguice e se enrede daquela maneira até lá chegar, e até desfazer todos os nós, todas as subtilezas e complexidades, é de mestre.
Mil e um pormenores vão detendo a nossa atenção num enredo complexo de múltiplos factores interdependentes (um filme 'miudinho' ao rés da vida, e um retrato da teia cisjordana duplamente asfixiante), e mantendo-nos em espera ao fio de algumas incógnitas por responder: história palestiniana cruzada de amores e traições amorosas, de resistência armada e de traição política, envolvendo a polícia israelita como master mind dos cordelinhos. A dada altura, um determinado personagem  - o traidor palestiniano, começa a carregar-se do peso de todo o nosso despeito, de todo o nosso desejo de vingança sangrenta e exemplar, não só por razões políticas, mas por razões de empatia amorosa: mais do que entregar a organização ao inimigo, ele carrega a culpa suprema: desfez o Par Ideal dos Grandes Amantes, desfez a salvação do mundo, e não apenas um pequeno grupo underground independente de resistentes. Traição a mais imperdoável de todas em cinema, a traição à Felicidade (ao próprio cinema como felicidade, isto é). 
Um escroque, e que o seria sempre, em situação de ocupação ou noutra, that's not the point. Mas, no final (e como último remate de uma linha de abnegação de amor tão mais incondicional e sublime que justifica tudo o que ele fez e não fez ao longo do filme), num supremo sacrifício, o tiro de Omar não se engana no alvo. De facto, na filigrana de toda essa trama, o agente israelita foi aquele que durante todo o tempo accionou o único cordelinho que importava a Omar, o cordelinho da vida da sua amada, e outros cursos de acção muito diferentes teriam sido tomados se não fosse isso. 
E sim, a escolha desse alvo e não do traidor (personagem vertida adequadamente num casting fortemente antipático) obedece, no personagem, ainda às razões do coração, mas a declaração de Abu-Assad, o realizador, é inequívoca: o primeiro e último alvo, donde tudo parte e para onde tudo converge, é o ocupante, e o tiro que lhe é dirigido abate a imagem como tal (deixando o ecrã a negro e o filme no fim), quer dizer, abate a ocupação, abate Israel, não deixa sequência para esse tiro (irrelevante se ele tem tempo de disparar a seguir sobre os soldados, se estes o matam, se o capturam, etc.), é um tiro total e único, unívoco, que profere uma só palavra total e inequívoca: saiam da imagem, saiam daqui.
Como filme, é bom, mas dá poucos tiros; como política, é letal, porque dá só um.


Mas talvez o mais interessante do filme, e o mais revelador, seja o pormenor incongruente que persiste no meio dele: é possível que Abu-Assad dispare a sua câmara directamente sobre o inimigo, e é sempre galvanizante ver-se alguém que não hesita e espatifa o veado (como o Caçador: 'one shot' de espingarda e de câmara), mas a verdadeira mensagem é aquela corda pendurada no muro durante dois anos e tal, com os personagens (vigiados e fotografados por tudo quanto é sítio pela polícia) inverosimilmente a treparem e a descerem a toda a hora por essa passagem interdita. 
É esse o verdadeiro cordelinho israelita, não o inspector da secreta: dar-lhes corda (literalmente: e mais literalmente ainda: a corda com que se hão-de enforcar), pô-los em movimento, acicatá-los, manter o ciclo de atentados e resistência violenta como justificação para a 'legítima defesa' de Israel, num jogo circular em que ambas as partes correm uma atrás da outra como o cão corre atrás da sua cauda. 
Desse ponto de vista, o tiro do personagem na cabeça do inspector israelita é absolutamente eloquente: ele acerta em cheio na câmara e mata o filme (é um tiro autodiegético): não tanto porque este tivesse que morrer para arrastar por metonímia a morte do personagem visado, mas para tornar manifesto que essa execução, manipulada por esse cordelinho oportuno mantido no muro, ricocheta sobre o próprio lado palestiniano: eis que o movimento de vaivém da resistência palestiniana produziu do lado israelita mais uma vítima periódica (a lógica do martírio interessa mais à vítima que ao carrasco), que era essencial sacrificar para manter em movimento o sistema de autoprotecção do ocupante e o controle geral sobre todos os rebeldes. 
Tal como em The Parallax View, o disparo de Omar não foi, no final, uma acto de sagacidade para abater o inimigo 'como se apanha um macaco' (na anedota que circula ao longo da película), mas exactamente o oposto: o acto certo previsto pelo sistema para manter homeostaticamente o seu equilíbrio optimal: aquela pistola facilitada pela vítima incauta no último momento é apenas o prolongamento daquela corda facilitada pelo carrasco previdentíssimo desde o primeiro, e manter em movimento um determinado combatente e a sua vítima é manter em movimento a circulação geral do estado de beligerância, o estado de excepção permanente que se tornou no próprio status quo do sistema.

O que é espantoso é que parece que Abu-Assad não se dá conta de tal: ele, realizador palestiniano, que inventa a corda israelita que põe no seu filme, não parece reconhecê-la como tal, quer dizer, como a representação literal e metafórica do cordelinho israelita que permite marionetar a resposta palestiniana e conservar o ciclo sem fim das agressões recíprocas e das respostas paritárias (nada, em qualquer momento, o indica).
No jogo de gato e de rato entre Israel e os palestinianos, esta peça cinematográfica, verdadeira bala simbólica disparada pela câmara (aparentemente sobre a câmara, colocada em posição subjectiva para receber o tiro 'nos olhos'), revela-se um enigma intrigante: a que ponto Abu-assad se dá conta de que o seu filme se vira contra si próprio, que aquela pequena vitória é uma vitória de Pirro, que a esperteza macaca que parece triunfar por uma vez sobre a estratégia do ocupante na verdade a cumpre, circula nela como mais um episódio controlado pelos cordelinhos israelitas? E a que ponto se dá o autor conta de que o filme não tem força intrínseca para estabelecer a sua própria interpretação e se dar a ler neste sentido, para revelar o seu verdadeiro statement, a saber: que o tiro final, longe de 'se virar sobre Israel' e saciar a vendetta inconsequente do espectador alinhado, sai inteiramente pela culatra, e é (de toda a evidência) ao próprio filme de Abu-Assad, ao próprio testemunho da causa palestiniana, que ele abate e apaga no ecrã, como quem dispara sobre Israel e acerta na Palestina?
Extrema cegueira, ou extrema lucidez? Não há dilema mais coadunado ao que hoje se passa naquelas paragens, e eis-nos a partir da sala e a subir pela corda tentadora do filme na ilusão de que pudéssemos aceder ao outro lado da realidade, que é o cinema, e ver 'para além do muro da estrada'. Mas do outro lado do muro é outra vez o lado de cá.

jmm

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