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quarta-feira, 29 de abril de 2009

cine-filo-sofia(s)... ou as rãs...












As rãs do canavial de arrabaldes são friamente abatidas por explosão pela cantora sempre amável, num excesso amoral e perverso de dispêndio de cadáveres desdenhados, tão destrutivo e distracto quanto a megalópolis que a comprime a ela. Em seguida, são fervidas e crestadas segundo o rito de passagem que conduz antropologicamente do crú ao cozinhado, quer dizer, do estado de natureza ao de humanidade, a atestar que já havia por aí anjos a bailar desde a pré-história (num outro filme, impotentes, assim eles mesmos o narram). Mas eis que uma rã vinda do molhe delas na panela pula do prato, permanece rã, forma o salto, abandona o seu novo charco de sopa rigorosamente tão civilizado quanto o ciclismo e a alta finança, se cose com as orlas imperscrutáveis da sala de jantar, evitando o cão, para coaxar ainda de noite algures nas dobras da roupa da cama: esta rã quixotesca é levada sobre o parapeito da janela, donde salta, livre, e irredutível a qualquer humanidade das formas civilizacionais antigas de trituração, como a explosão de granadas cilíndricas militares e a cozedura a cem graus centígrados.

Esta rã esqueceu-se de pertencer ao enredo e à cadeia de causas/efeitos, persiste como a única forma de vida em todo o filme, inclindo o autor, eximida àquele afilamento e compleição peculiares da figura que nesta traem a incessante sucção de um destino retor, como ciclistas malditos amarrados à condição de uma estranha diálise. Todas as figuras no filme se movem para diante, perseguem um afazer, compelidas sobre a linha implacável da causalidade kârmica. Não assim a rã: a rã, quanto a ela, atravessa-a, a essa linha, a linha das recentes formas civilizacionais de trituração - a linha ferroviária. Ela sobe para um carril, e o combóio também. Numa ironia da elipse cinematográfica no seu pudor de olhar, vemos sobre os vidros da janela o tufão dos seus reflexos ao passar. Não sei se por dedicada a um ciclista luso-francês, a película termina, sem uma palavra, em bilingue: um barco à vela (a tela do Cinema, de imagens mais reais que 'o real' circundante) avança, movido por três vélos, como uma carripana ao longo de uma estrada que parece começar na América e passar uma ponte que a deixa em França, perto de casa, onde o filme acaba frente à televisão por onde começara.


reflexão de José Manuel Martins - Abril de 2009

1 comentário:

The Profane Angel disse...

ótimo blog. Já está em meu crème de la crème