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sábado, 8 de abril de 2017

CfL

CfL - cinema - FORA - dos - Leões apresenta :








                               Monsieur Klein (1975), Joseph Losey 



Sessão inscrita no projecto ‘No País do Cinema’ (
parceria entre a associação ‘Os Filhos de Lumière’ e o Cinema-fora-dos Leões), com apoios do ICA, DRCAlentejo, Institut Français du Portugal e do Programa Cooperacción Española (Instituto Cervantes de Lisboa e Embaixada de Espanha em Portugal)
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Cruz de David

Sexta-feira santa colocada, pela escolha cabalística do filme de Losey, em nova reviravolta da encruzilhada judaico-cristã da nossa história sacrificial. A cruz de Klein (nome alemão de francês que é nome judaico de alemão, e que designa também secundariamente a estratégia de sobrevivência ancestral - 'fazer-se pequenino contra uma parede', passar despercebido), a cruz de Klein inverte a de Jesus, judeu que nela devém cristão por antonomásia: pois Klein, o gentio, devém judeu na estrela de David que lhe impõem que carregue.

Sexta-feira santa quase, quase dia 13 (mas 14 são 'os passos da cruz'...) às avessas, como a História: qualquer judeu crucificado pela civilização cristã é de novo o primeiro, Cristo, numa paródia macabra das pulsões rituais da eucaristia e da procissão pascal. E seria preciso que um novo cristo involuntário e anónimo viesse refazer no nosso tempo um percurso inverso, e tornar-se judeu: ao mesmo tempo que, em vez de assumir no sacrifício 'os pecados', assumisse as inocências - ou antes, assumisse a indistinção de pecados e inocências diante da gratuidade monstruosa e destrutiva da pulsão sacrificial, a pulsão suprema que une ritualmente num tempo circular sem fim escravos e senhores, domínio e submissão, exterminadores e exterminados.

É essencialmente da obscuridade insondável desse laço perverso entre humanos que o cinema de Losey, ele próprio um acossado 'com uma causa', se ocupa obsessivamente, filme a filme. No de hoje, assistimos a, e compreendemos, a transformação radical de um Klein que primeiro protesta contra a injustiça enlouquecedora de os nazis ocupantes de Paris o perseguirem na pessoa de um seu homónimo judaico  - para em seguida protestar contra a injustiça enlouquecedora de perseguirem o seu homónimo judaico na sua pessoa, que é a mesma
Podemos compreendê-lo como teia kafkiana que o leva a intuir fulminantemente que uma confusão de identidades é uma fusão de identidades, consentindo em assumir um destino partilhado, o destino do anonimato condenado. Só talvez não possamos compreender por que o faz Klein em agnus dei, em cordeiro sacrificial, numa espécie de sobre-mimetismo da resignação desenganada das comunidades judaicas encurraladas. Ou seja, por que razão a exponenciação da sua indignação, quando a compreende como 'judaica'  - quer dizer, como 'humana qualquer', e já não como gentia e pessoal -,  em lugar de redobrar de esforços com uma nova consciência, pelo contrário se esvai, se esbate, permite ser abatida. Para fazer a experiência culposa do que é ter perdido absolutamente o privilégio da distinção - ter perdido o direito 'gentio' a indignar-se, ter devido-judeu a tal ponto que deixou de ter sequer o direito diferencial de tentar salvar-se salvando o seu 'novo povo', ou o dever, ainda gentio e privilegiado, de tentar salvar os judeus e, assim, salvar-se?... 
Se, finalmente humano, Klein deixa de se distinguir enquanto gentio de outros enquanto judeus, porquê centrar essa indistinção no judaico - inapelavelmente condenado, e sem protesto -,  e não no humano: protestando, precisamente porque inapelavelmente condenado?

É esse o destino de todos os personagens sacrificiais (o que não é o mesmo que 'sacrificados', mas talvez o oposto), em Losey, de todos os seus personagens pascais: o aristocrata que sucumbe a servo do servo, em The Servant (1963), o 'mensageiro' mercurial que perderá a chama da vida, em The Go-between (1971), o fugitivo raivoso e decidido que num último gesto de desafio e enfrentamento se faz abater em vez de se salvar (como se a sua salvação fosse uma derrota de fugitivo, e o seu desprezo pelo inimigo não lhe permitisse reconhecê-lo como digno de alguém 'se salvar' dele'), em Figures in a Landscape (1970)... Paradoxos que atravessarão também o seu Galileo (1975), reminiscente da sua colaboração com Brecht na respectiva encenação teatral em 47, ainda nos Estados Unidos.
Mas nunca tão insondavelmente como neste personagem enigmático de sexta-feira de Paixão, que devolve ao 'mistério da cruz' um certo carácter de crucificação do próprio mistério, um 'mistério' na encruzilhada e no labirinto, agora à Losey, e que não nos deixa missa nem teologia, apenas o tempo presente - por formular, mais do que por resolver.

jMM

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