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quinta-feira, 18 de agosto de 2016

cinema-fora -dos Leões

Sexta,  26/8
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A banda-desenhada foi o tom e o teor escolhidos por Arthur Penn para cavalgar o Oeste, escarranchado no século do cinema. 
Mas, se assim se diria, do cinema ficcional, colar ele abusivamente essa transparência da sua película sobre a realidade, já com os documentários de Morris é do lado desta última que vemos Rumsfeld ou McNamara serem os primeiros a saltar como diabretes e a pagarem-lhe da mesma moeda, deixando ao obturador a tarefa sentada de se limitar a documentar a vontade deles em serem cartoon. 
E, se em Penn o cinema provê à realidade o seu cartoon, em Morris a realidade entrega-se directamente como cartoon e ready-made ao seu cinema.

Na verdade, este cartaz de Bernardo Bagulho - como sempre, em cheio na mouche na sua eloquência terrorista * -  não está a desvirtuar em caricatura o seriíssimo serviço público e até mundial prestado por qualquer destes dois Secretários de Estado de A Melhor Defesa é o Ataque à Bomba (e o melhor ataque é o ataque preventivo - daí o supositório, prestes a ser administrado aos povos ruins pela mão asséptica e enfermeira do Grande Anónimo providencial, que já foi A Luva ** do Yellow Submarine [Dunning, 1968]). O cartaz limita-se a segurar na mão aquela tiny little bomb que polariza como objecto único de fascinação adicta toda a vida e carreira dos nossos dois cabos de guerra civis, e, por arrasto, de mais de meio século de política internacional à distância de um botão. 
No Suprematismo desta Man-obra Branca sobre Fundo Negro não deixamos de enxergar, por um irresistível efeito de Gestalt, o 'negro sobre negro' camuflado do braço recto donde sai a mão enluvada: no indescortinável emaranhado do nevoeiro da guerra, a figura não se recorta sobre o fundo - emana dele.
Porque esta figura já não é a figura branca do humano, mas a figura sem nome do seu sucedâneo: o polegar oponível da Consciência neocortical segura agora, entre os dois dedos, o sexto dedo teratogénico de uma nanotecnologia transformada pelo ciclo maligno da radiação em prótese tumoral, como a pistola visceral de Videodrome (Cronenberg, 1983). A guerra ficou agarrada à Mão, e tornou-se num dos seus instrumentos, miniatura carnavalesca da era digital. No retorno radioactivo da bomba como monstro ***, o sexto dedo engrendra-se a si próprio, como nos antigos mitos.
A bomba que brinca às silhuetas alvas do século XVIII **** e que prefigura o pesadelo da sua miniatura (ou, por rocambolesca metonímia, o foguetão que a transporta), é portadora de um historial que é simultaneamente o seu e o do intervalo dos dois dedos que a pinçam.
Esse historial revela-se altamente didáctico: ele ensina à História a natureza adaptativa - e de maneira nenhuma uniformemente escalar - do seu uso militar. E McNamara faz sua a lamentação do estratega do bombardeamento (a 90% de taxa de aniquilação) de Tóquio e dezenas de outras cidades nipónicas por bombas incendiárias, o General LeMay, quando, por razão nenhuma,  do Alto Comando lhe tiram essa incumbência e a substituem pela 'inumanidade' de Hiroxima e Nagasáki. A bomba ígnea voltará com o odor matinal do Vietnam *****.

Se a bomba é das coisas deste mundo que se encontram mais à mão, essa distância entre os dois dedos preênseis não deixa também de abrir um intervalo ético, uma preocupação, um rebate de consciência. E é curioso que que esse gesto de uma escassa distância entre os dois fios do detonador, entre a guerra e a paz, entre o indicador e o polegar, recorra tanto em McNamara como em Rumsfeld. Uma das vezes, para exprimir o "that close" a que se esteve de uma guerra nuclear de extinção planetária, na crise dos mísseis de Cuba; de outras, para exprimir essa margem de incerteza ética em relação à inevitabilidade de tal ou tal dano colateral: nesse caso, entre os dois dedos encontra-se ao mesmo tempo a bomba inteligente enviada cirurgicamente sobre o alvo num trabalho de finura dos dedos artísticos (que aqui podemos observar requintadamente afilados e excquis) - e o reduzido número de baixas civis a que, desde a apertada margem de manobra entre guerra e ética nas missões aéreas sobre Tóquio subordinadas ao comando '- destruam tudo',  se chegou em décadas mais recentes de assinalável aperfeiçoamento tecnológico.

É por isso que a manobra de oponibilidade que os Secretários de Estado estão a experimentar com a brancura dos seus dedos oferece uma mensuração, não apenas do grau de oposição ontológica que constitui o mundo, como da abertura do buraco de agulha que vai deste para o reino dos céus.
Mas é também por isso que os personagens fazendo sombras com os dedos nas suas histórias ao deitar, contadas à câmara como vasto registo de balanço, transformam o seu mundo num cartoon e os seus rostos na caricatura de uma mão - uma mão que segura Tóquio e um destino, a arderem num centímetro interdigital de mira aeronáutica; uma mão orgulhosa do alcance que a sua oponibilidade de primata sxuperior conquistou após milhões de anos de evolução: a eficácia misericordiosa de acabar a guerra o mais depressa possível, se racionalizando os bombardeamentos e deixando de desperdiçar tantas mortes
Essa Tóquio de cartão cuja maqueta e flagelo o entrevistado revê mentalmente na memória, essas aventurosas peripécias sempre por um triz (se Cuba, o Iraque, o Vietnam, o Japão, a URSS, vão 'finalmente começar a agir racionalmente' ou não), essa 'imaginação militar' que inebria McNamara, esse lapso moral mínimo e irreversível que dista entre dois dedos sempre exactamente a mesma espessura que a da bomba que ele calibra sobre uma cidade  - o que resta dessa grave e esmagadora massa de realidade, nos discursos rememorativos dos dois responsáveis? Uma história aos quadradinhos da WW2 e da Guerra Fria, com a consistência evasiva de uma representação em desenhos coloridos do mundo histórico, de um efémero argumento de aventuras com lição moral no fim (que McNamara faz questão de extrair, transformando a sua biografia numa cautionary tale), com a consistência de uma série de azares e episódios, ou de rábulas e crises,  presos por entre os dedos de secretários de estado entretidos no recreio da fábula do mundo. 
Onde estão também todos os outros meninos a brincar à mesma brincadeira, sem faltar um único, não nos façamos ilusões. 

Poderiam ser LeMay e McNamara a sentarem-se no banco dos réus de Nuremberga a responderem por crimes contra a humanidade?  - Absolutamente!, e até repetidamente, e mais uma razão para serem eles a ganhar as guerras ou pelo menos a não as perderem - concluem. 
Por um triz que esta bomba não tinha sido real, por um triz que não tinha sido largada, por um triz que faltaram 10% para Tóquio ter ardido toda, por um triz a guerra e a moral teriam podido coincidir, e o imponderável moral entre dois dedos poderia não tomar a forma de uma bomba de carnaval que um dia, há muito, muito tempo, pregou um susto valente ao Japão.

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