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quinta-feira, 18 de agosto de 2016

cinema - f - Leões






O CINEMA-FORA-DOS LEÕES apresenta

Sexta-feira, 19 de Agosto, 21h30
AUDITÓRIO SOROR MARIANA
Cineclube da Universidade de Évora


LITTLE BIG MAN / 1970, Arthur Penn (139 min.), com legendas em português.


LITTLE BIG MAN / 1970, Arthur Penn

Resumo da sessão:
Mr. Crabb, aka Little Big Man, aka Dustin Hoffman, surge na sua pele de pergaminho rugoso como um mapa temporal da História, um rosto-mostrador a encher o ecrã (signo cinematográfico da Verdade: um rosto não deixa mentir, um grande plano ainda menos), gravando de viva voz 'como foi que tudo aconteceu'. Hoffman, então com a idade de Cristo, surge como um tratado vivo de maquilhagem, a usar talvez o seu maior recurso histriónico - a sua voz - para envelhecer até aos cento e vinte e tal anos, e é desde essa idade adelgaçada que a voz off do gravador, fininha e guinchada numa toada de outrora, acompanhará 'intermedialmente' em função narradora a imagem cinemática durante o século e meio daquelas duas horas.
Duas verdades meias, a do rosto acabado de chegar do camarim da maquilhadora, e a da voz registada fanhosa em fita magnética - as duas verdades do cinema: a imagem e o som -, completam-se entre si. Esta pura ficção endiabrada de Penn será a primeira de três filmes em rajada na nossa programação que obedecem ao mesmo dispositivo: três americanos revisitam, desde o seu 
grand âge, a história a que assistiram e que eles mesmos fizeram (qual, e em que medida, resta indesvendado) - três Secretários de Estado da Defesa, se levarmos a sério que o massacre de Custer foi premeditado e supervisionado em pessoa por Jack Crabb.
Ora, os dois documentários que Errol Morris põe no encalço da História segundo McNamara e segundo Rumsfeld não conseguem ir mais longe do que o cinema ou do que qualquer ficção, não conseguem superar o dispositivo; diria Kant: não logram passar por cima das 'condições 
a priori de toda a experiência possível', que nos condenam a ter acesso apenas ao mero 'ser para nós' do fenómeno, e nunca ver de verdade 'a coisa tal como ela é em si', a realidade ela mesma.
"Eu antes quero muda emoção; / Os lábios mentem, os olhos não", isto dizia Garrett, ao mesmo tempo que ia praticando as várias religiões literárias disponíveis - 'a religião dos olhos negros', a religião dos olhos verdes, a da Joaninha, a das inglesas, num politeísmo aos baldões vagamente poligâmicos por umas 'viagens na minha terra' sem eira nem beira, análogos aos 'períodos' do 'romance de aprendizagem' de Hoffman através das incertas terras de todos e de ninguém do far-west. Pois vendo mais de perto, o cinema corrige o verso do poeta: se os lábios mentem, dos olhos então nem falar, de maneira que Morris diante dos seus chefes de guerra, ou Penn diante do seu, não saem, nem um nem outro, do círculo mágico da imagem e do som, do olhar e da voz, das palavras e do visível.

A questão não é, pois, como sair desse ciclo fatal - mas como entrar nele, e como regê-lo de dentro dele. Muitos perceberam que a mentira reside na coerência - e, em vez de articularem sem mácula o som e a imagem, aprenderam a descompassá-los entre si, a sincopar o seu ritmo a contratempo como no jazz, a bater em falso e a destempo a bota e a perdigota. Nunca acreditar na imagem que confirma o discurso que confirma a imagem, como nos alibis recíprocos de dois escroques: pelo contrário, aproveitar o desirmanamento do gravador e da câmara de filmar para os desacreditar um pelo outro.

Mas não será essa a fórmula de Penn.

Curiosamente, Errol Morris, num paradoxo de pusilanimidade, 
entrega-se à mercê das suas presas e transforma, sem mexer uma palha, o documentário na ficção acabada (por pretender documentar o indocumentável): a ficção de documentário, precisamente. E é Penn quem faz a única coisa que lhe resta: transformar, além do verdadeiro e do inverosímil, do falso e do conjectural, do aproximado e do efabulatório, a mais desvairada ficção num puro documentário - e, na verdade, no rigoroso documentário dessa ficção que se chama Estados Unidos da América. A fórmula de Penn consiste tão simplesmente na hiperbolização da coerência entre imagem e palavra: nem coerência nem incoerência, nem "Modo institucional de representação" (Noël Burch: o padrão tácito de construção convencional da imagem-do-mundo 'verdadeira', dominante no cinema) nem desconstrução à la Duras ou à la Godard, mas um coerente excesso de incoerência que é um incoerente excesso de coerência e que, pois, se separa ironicamente de si mesmo numa fissura insuportável.
É nessa fissura que é colocado o espectador.

Porque Penn sabe que lhe cabe documentar 
o indocumentável, e então é a isso mesmo que mete mãos: documentá-lo como indocumentável - e não, numa ingenuidade penosa, procurando, como Morris, torná-lo ainda derradeiramente documentável (através 'dos lábios e dos olhos' de Rumsfeld e de McNamara, à procura dessa fissura, sim, mas num momento acontecimental revelador que, porém, quando acontece, não passa de uma representação dele próprio, o estremeção de verdade que o espectador aguarda e que no final não teve a certeza se viu ou não).
A primeira noção que o filme veicula é que o matusalém que temos diante dos olhos é - 
a survivor. Mais adiante veremos como a sua 'biculturalidade' de banda desenhada é também a mais pronta e inocente arte do vira-casacas que, em todos os momentos, não decide jamais, porque entretanto 'está a aprender a vida' e o seu profundo significado, seja dos lábios de Mrs 'Lulu' Pendrake, seja da sageza índia de almanaque do velho chefe (que é um velho chefe bom actor), do cepticismo elegante do vendedor de elixires (Martin Balsam, numa sequência de cenas intermitentes e reatadas [sistema deintercut que rege todo o filme e desenha a vida em duplicado do centenário tetravô de bebés mortos] que terminará em pleno cartoon jubilosamente ostentando os dois charlatães dependurados da vara de pau em vestimenta de alcatrão-e-penas), seja das não-revertíveis Custer Decisions, seja da 'força do sexo fraco' dentro e fora do teepee, seja dos bons inimigos e dos péssimos amigos, da irmã pistoleira ou do pistoleiro irmão, seja da História ou seja do turbilhão em que o filme de Arthur Penn a colhe.
Olhos e olhar vêm, então, no começo do filme, do fundo encarquilhado dessa pele do tempo no rosto de Jack, glóbulos embaciados pelas cataratas e por um velado travo de mágoa que nenhuma palavra e nenhuma imagem, que não essa mesma, poderão explicar. Explicando, sim, o cinema, Penn funde esse olhar no seu olhado - a superfície da pradaria 'onde tudo começou' - e mostra como o plano do visível e o plano do vidente não formam o jogo dual do campo e contracampo mas sim, como quer Merleau-Ponty e, antes dele, Leibniz, uma troca cruzada por 
fondu-enchaîné (um 'quiasma': precisamente o dos nervos ópticos) que traz o olhado à mágoa do olhar e inunda de pradaria esse olho, o qual, baixando em diagonal diante de nós, mergulha nela de novo como da primeira vez e se faz a visibilidade mesma dessa planura (parafraseando uma fórmula que pedimos de empréstimo a José Gil). Fundido-encadeado que é aquela pura figura do devir que nos permite assistir a duas coisas serem ao mesmo duas e uma, encadeadas e fundidas, 'tornando-se o olhador na coisa olhada'.
O segundo quiasma, esse, pertencente ao cinema, chama-se 
imagem, e é o lugar onde a percepção visual de um olho que mira encontra a (in)consistência da recordação imaginária reconvertida em mundo. Por definição, a imagem cinematográfica é percepção imaginária ou imaginação perceptiva e é, como faz notar Deleuze, simultaneamente presente e passado, percepção e memória, contemporaneidade de uma e da outra - precisamente, ela é, ao mesmo tempo real e virtual, uma imagem. Cambalhota filosofal cuja boleia plena Penn decidiu sem remorso nem rebuço apanhar neste filme às reviravoltas. Vejamos como.
O 'pequeno grande homem' inaugura, na sua designação mesma, vinda do título, a série oximórica das inversões, das pseudo-dialécticas, dos reversos, auto-contradições, paradoxos e paródias que entretricotam o filme inteiro. Nome emblemático, o caranguejo Crab(b) executa o movimento retrogradante da rememoração, em personagem 'autêntica', vinda como testemunha ocular, num contínuo histórico, dizer-nos em carne e osso um século que o inconsciente traumático americano pressente estranhamente perdido, desligado do nosso tempo, irremediavelmente pretérito, irrecuperável ao fluxo da evanescência do ser. Pois é esse hiato neurótico que esta figuração do imaginário - o tempo retrógrado do caranguejo, o feitiço contra a mortalidade - vem preencher e resgatar. Já sabemos que, para além do vazio intermédio entre a fundação dos Estados Unidos e o mito que rememora a sua história, o outro grande buraco do inconsciente americano corresponde ao 
inconfessável confessado desse momento fundacional (e poderíamos aqui parodiar sem fim o 'quadrado lógico' declinado por Rumsfeld no filme de daqui a quinze dias: the known known / the known unknown / the unknown unknown / the unknown known, qual deles o mais elusivo na sua ronda de gnomos elusiva...): o cemitério que alicerça o edifício da nação, baal de baixo que ainda hoje reclama, ritual sem fim, o seu quinhão de vítimas perpétuas.
Daí que a nação não cesse de se refundar, de se reconfirmar, de garantir contra os seus inimigos a inviolabilidade do seu território, o qual, em sentido muito generosamente alargado, calha a ser... precisamente o dos seus inimigos. Fronteiras asiáticas ou sul-americanas, europeias ou africanas, são a primeira linha de trincheira avançada americana. Isolacionista, a América nunca quer - mas os seus inimigos, 
hélas, sim. Deste modo, Custer sobrevoou Hanói e Hiroxima antes ainda de McNamara ter "chocado sobrenaturalmente" a Guarda Republicana de Hussein ou de Rumsfeld ter agarrado em si e descido à mais gloriosa derrota militar de todo o mito da Fundação: o massacre providencial de Little Bighorn River (mais um little-big às voltas no estômago do filme). Por isso, na aparência do contrário, os EUA não vivem sedentos de história, mas de acabar com ela: de estabilizar a estrutura que, neles, faz as vezes de história, estrutura na qual todos os personagens permutam sem alteração papéis acrónicos, e que tanto emerge sob as figuras ('trabalhos do sonho') do hotel de Shining, como das estatísticas anuais de mortos domésticos por arma de fogo, como do 'desdobramento de forças' que protegem preventivamente os limites da nação em outras tantas 'muralhas-da-china' espalhadas pelos sete continentes, incluindo o orbital.
Mas, uma figura que assim torne contemporâneas (da mesma pessoa, da mesma estrutura viva) duas épocas descontínuas, dois tempos separados, uma figura capaz de trazer 1860 a 1970 
debaixo do mesmo chapéu, é evidentemente uma auto-sabotagem burlesca desse mesmo delírio, preenchido pela ficção necessária da psicopatologia que a origina. Burlesco servido como antídoto perigosamente homeopático (como desfazer em farsa, como branquear em peripécia irrisória, a pulsão assassina que ali se instalou como suprematismo branco, como atrever-se a profanar a dor irremissível dos mortos e dos trucidados, como espezinhá-los numa comédia rocambolesca da indústria californiana?), fornece ao mesmo tempo a escala métrica que permite aferir todo o filme: se 110 anos de idade seriam inverosímeis, 120 e tal anos são uma evidente burla. Ora, a burla que não esconde sê-lo, é oburlesco, e a ele devemos o achado que permitiu a Penn realizar uma das obras-primas menos reconhecidas como tal da história do cinema.
O gesto autoposicional de Crabb, que inaugura o filme ao qual, como narrador, sustenta, é o de se suprimir 
originariamente a si mesmo e à sua credibilidade. Não é que ele se contradiga e se destrua, não é que coloque o filme sob a ameaça do inverosímil, do impossível, do forçado, do 'pacto ficcional' (neste caso, pateta): não, Little Big Man comparece, antes, como o instaurador burlesco deste espectáculo burlesco, e Grande Trickster gémeo de si próprio enquanto jovem índio. A sua maior e única burla não é nenhum acto, porém, mas existir. Burla satisfatória: o que não existe não engana. Ou, dito de outro modo, um burlão existe, o burlesco não.
Todo o problema para Penn não será, então, fazer existir o seu burlesco, mas pelo contrário, mantê-lo numa inexistência tal, 
que ela faça existir o seu contrário.
Ora, o que é o contrário do burlesco? É 
o insuportável.
O insuportável, "
l' insuportable", tem uma história recheada, no cinema e na sua teoria. Deleuze adverte-o como uma categoria clandestina e indeterminável a emergir no neo-realismo italiano (Umberto DStromboli,Viaggio in Italia) e a medrar no terreno fértil do fin de partie subsequente, mas não conheço caso que melhor defina esse 'mal-estar na civilização' do que o filme de Gus van Sant, Elephant, que não trata senão desse único tema que toma conta de tudo insuportavelmente. Pela negativa, aquilo a que o insuportável não corresponde é a uma situação definida, a uma linha causal identificável, a uma circunstância nomeável. O insuportável é também e sempre inexplicável. Em Elephant, ele está presente em todos os lugares e personagens, e de todas as maneiras, não mais no massacre final que nas massacrantes deambulações intermináveis, que não são já elas próprias senão as deambulações do insuportável, o ritornello mortificador do Für Elise - situação asfixiante universal, e não pico dramático, evento circunscrito.
O burlesco de Penn funciona assim: a par da dor sem nome, contracenando com ela, jogando ao gato e ao rato com os mortos na mesa de montagem, o burlesco torna-se mais insuportável do que ela (pico dramático determinado), e converte-se, ele, n'
o insuportável (Situação universal indeterminável). Mas não que o insuportavelmente burlesco responda à pergunta moralista - como podes ser burlesco diante desta enormidade?! Isso é ainda muito pouco para o burlescamente insuportável, que pergunta, muito mais insuportavelmente: e como conseguirias jamais não o ser senão, como conseguirás jamais escapar ao pavor de sê-lo?
O burlesco é a tessitura da asfixia inescapável, da asfixia que se recusa a morrer, do 
morto para sempre que é este Undead de mais de cento e vinte anos do trauma americano - a figura da pulsão de morte sem fim que por isso nunca morre, que por isso nunca vive, que persiste e persiste e persiste, e que não dorme. Eu aguento assistir ao massacre dos índios no ecrã (o 'insuportável suportável', em rumsfeldês), mas não a um filme que o dance em corridinho (o 'insuportável insuportável', porque um 'suportável por isso mesmo insuportável'). É esse redobro que nos crava o espinho.
Essa mesma lição emana do interior da diegese, na cena crucial em que Jack efectua junto do 7º de Cavalaria o mesmo que diz ter efectuado junto dos índios para sobreviver - ser tanto mais sacudido de riso quanto mais os índios o crivavam de cactos. "E, quanto mais me espetavam, mais eu ria, sir, ou não estaria aqui agora vivo". É esse riso esbracejante, com que isso Jack conta, que o está precisamente a salvar de um enforcamento sumário às mãos do exército, e o espinho a que se refere, no jogo macabro das inversões que alastram pelo filme, assistimos a ser-lhe espetado uma cena antes, quando, no massacre na margem do Wichita, Jack assiste, lá desde o meio dessa fuga burlesca em 'Homem Invisível' no vórtice da carnificina, à corrida desesperada e à morte pungente de Raio de Sol e dos dois bebés que ela transportava, espetados pelos cactos selvagens e tribais da fusilaria azul, virados a tiro. O sentido de inescapabilidade fatal, após o uso dissonante e revoltante da música de tambores e pífaros sobre a cena covarde que a desdiz, e que desmantela de uma penada a ideologia militar americana de alto a baixo, é espetado no espectador * sob a forma de silêncio: Jack morre com ela, e nós também. O filme fica calado.
Mas, se Benjamin dizia só haver algo de pior do que o canto das sereias - o seu silêncio -, aqui é às avessas: quando esse silêncio se transforma em riso, e o burlesco regressa sobre o trágico; mas sem os esgares melodramáticos do Ridi, pagliaccio, que a coisa é aqui demasiado séria.
Ora é neste justo pico auto-reflexivo que o filme revela a sua fórmula: o riso do espinho de Jack, no filme, é o riso do filme do espinho da América. Jack ri porque o seu espinho é insuportável, o filme ri porque o espinho de que trata é o insuportável. Jack, e o filme, dizem-no, e o seu dizê-lo é fazê-lo.
Assim, o contraponto entre o burlesco e o insuportável dá-se de suas maneiras: ou por contraste abrupto entre ambos (uma só vez, como qualquer morte), ou por coalescência de um com o outro (constantemente, como qualquer vida). Lancinante, o seu efeito deriva da sua alternância: assim, a única cena que tomba no silêncio não tem nenhuma outra a fazer-lhe sombra - e pode, ela, assim, ser a sombra. Inversamente, perante essa paragem única da morte, o burlesco ganha um escurecimento que, sem nunca o deter, o acompanha. A sequência de cenas referida introduz didacticamente no meio do filme esse princípio da sua leitura.
Do mesmo modo, o redemoinho perpetuum mobile do burlesco permite, não só evitar o peso acabrunhante de uma shoah que proíbe a imagem, como o moralismo pontificante que teria que a acompanhar histericamente. E, tal como só a ironia pode sapar a afirmatividade opressiva, só o burlesco pode introduzir uma tremura ontológica na substância da realidade que nunca a leve suficientemente a sério para a expor ao cómico, ao risível, ao grotesco, ao paródico, ao ridículo. Todos estes, modos de uma quebra que parte a compostura do mundo, enquanto que o burlesco esclarece não haver nenhuma para ser quebrada.
Ao mesmo tempo, esse recurso providencia uma economia narrativa vantajosa para um filme que se quer agigantar à escala da história americana para melhor a empequenar (com todo um carinho inócuo de big little): chamar para o giro do seu carrossel estonteante a inteira parada das 'cenas do oeste', transformando o filme numa espécie de palco de vaudeville ambulante em que o Oeste se representasse para si próprio no enredado folhetinesco de todas as suas peripécias memoráveis.
Que tom, de facto, poderia Penn adoptar para se ocupar daquilo que declara politicamente, de chofre e à entrada, à América de 1970 à qual se dirige: que o seu território foi obtido por meio de um genocídio - "a saber, de um extermínio". Sem forçar muito: esta série de sinónimos, no rescaldo mundial do holocausto (e tanto Penn como Hoffman - e como Balsam - são judeus), não apenas confronta a América com um crime contra a humanidade, como a equipara ao nazismo. "Extermination" é a palavra: Vernichtung.
Como servir-nos um filme sobre um holocausto denegado e, num certo sentido, porque denegado, ainda em curso? Como servir-nos um filme que escapa a tão negras tintas porque o seu holocausto é 'mais leve', mais... militar, difuso, casual, até?
- Um holocausto mitigado de tipo benigno, are you joking?! Só podia sair resposta no mesmo tom - de onde o burlesco, que se dirige, tanto quanto à horrenda coisa representada, à horrenda tradição da representação da coisa.
Ao Western, nomeadamente. Boa parte dos seus personagens rodopiantes funcionam como uma pura recusa da representação, como uma desrepresentação feroz da subrepresentação a que a tradição cultural e cinematográfica estado-unidense os vota.
Assim, o desequilíbrio entre dom e dívida (escarnecendo da seriedade antropológica maussiana);
o índio em modo retrógrado que avança recuando, saúda despedindo-se, se lava com terra e se seca com água;
o travesti hermafrodita;
a facilidade com que Jack entra e sai entre os dois mundos;
o bom atacante pawnee que poupa brancos mas não índios;
as contradições da guerra (agradecer a vida ao inimigo que mata o amigo que o queria matar);
a desconstrução do conflito racial brancos / pretos pelo ponto de vista índio, que vem desestabilizar o progressismo unilateral das 'lutas dos anos 60 pelos direitos humanos' em nome de uma causa esquecida e sem voz que vem baralhar o consenso das prioridades políticas (os 'seres humanos' [cheyennes]** continuam a achar os "black white men" [sic] tão 'estranhos' como os white men, dos quais, para uma perspectiva terceira, são uma variante e não um oposto, entendendo-se por 'estranho' a completa - e incompreensível - incompreensão, pelos brancos, da ordem do mundo);
a virtude libidinosa da reverendíssima Faye Dunaway;
a batalha de honra travada pelos índios com pauzinhos com os quais 'humilhar' os brancos, num jogo do toca e foge em que, reconheçamo-lo, Penn terá ido um pouco longe demais no seu inabalável anti-etnografismo ***;
tudo a culminar na impagável tirada à Groucho Marx do General Custer num jogo lógico de outsmarting - fazes-me crer que não queres eu escolha atacar o vale para que eu pense que tu queres que eu escolha atacá-lo, de modo a que por essa razão eu conclua que não devo atacá-lo, quando na verdade tu queres mesmo que eu não o ataque, ou seja, que tome a decisão errada que salvará o teu povo? Pois bem, nesse caso vou mesmo atacá-lo, e chacinar o teu povo:
todas essas baralhadas, que vêm acentuar oitava acima as dos filmes anteriores, servem para abater um a um os ícones e clichês da Representação instituída, seja a do baptismo, a do casamento inter-racial (as trocas-beldrocas nesse capítulo não poderiam ser mais Marivaux - ou mais Mamet, ou mais Marx Bros.); a do bêbado; a do pistoleiro ("a man is not complete without a gun" - mas isto diz-lhe uma 'mulher de armas', a feminina irmã arrapazada -, um credo que Penn explorara à exaustão três anos antes em Bonnie & Clyde); as dos sonhos premonitórios de folclorismo 'xamânico'... Todo esse acumular de uma mesma figura dinâmica do rodopio, presente em todas as realidades, destina-se a deixar ficar o segundo grande Insuportável do filme: o desconserto do mundo, correlato de um mundo genocida.
Esse burlesco universal não deixa nada a que nos agarrarmos: o repórter improvável leva a gravação para nenhures, a mágoa de Jack morreu há mais de trinta anos com o nonagenário, e a nenhum índio e a nenhum branco é consentido, na galeria inflexível de Penn, ser mais do que uma caricatura de banda-desenhada.
De facto, de que serve saber que o Custer histórico seria até, contra Grant, um simpatizante da causa índia e um opositor à sua erradicação do território? Torta por linhas direitas, a História chega sempre ao seu destino, e o resultado é o reverso do reverso, quaisquer que sejam as 'Decisões Não-revertíveis de Custer': ou seja, outra vez o mesmo. O saldo e resultado de todas as caramboles é outra vez o mesmo Mesmo.
Mas não é em toda esta genialidade que o filme de Penn é genial. Para além do mais, há o ritmo dos planos, cenas e montagem, infalíveis; o encadeamento dos planos, que se comentam entre si, ou cuja lógica de oposições os põe a falar, os torna linguagem (o que é mais raro à imagem do que costuma dizer-se). É também um aceno discretíssimo às figuras da história do cinema fantástico: O Homem Invisível (o velho chefe), o Capitão Gancho (Martin Balsam-'Meriweather').
Mas há também a cenografia rocambolesca e inventiva, como o ataque à diligência, convertido também ele num comportamento burlesco da própria movimentação do atrelado; e os pormenores micrológicos como a recepção do último suspiro de Hickok por uma nota de banco sobre o chão, ou como os gorjeios amorosos de Dunaway que sozinha monta em off uma cena inconfessável, como nunca outros nenhuns houve em tela destes ou doutros cinemas; ou como a conclusão de que, sim, Lulu 'whatever you want, you get' Pendrake era exactamente a perfeita imagem da esposa de um Senador .
E eis que o damned good movie coincide com a damned good politics, porque é à cara da actualidade que ele dispara o seu j'accuse!. Não há mais nada a fazer senão dispará-lo, nenhuma denúncia, nenhuma acusação, nenhum lamento traz os mortos (nem os vivos) de volta.
E não é leve, o repositório. Na boca do índio são postas as palavras: 'para o homem branco, tudo é morto e tudo é morte, a começar por ele'. 'Estes territórios foram-nos prometidos para sempre, por tratado' - a seguir, é Wichita, 'attack without mercy': feridas abertas a bater em filme à porta do juiz, não à do historiador. 'Não nos conseguimos ver livres dele'. 'Com o homem branco, perde-se sempre - e só há uma maneira, morrer'.
Mas é sobretudo a espantosa sugestão de que Custer estaria a uma chacina de distância de ganhar, graças a ela e coberto da glória de um triunfo na conquista de Lebensraum para 'os americanos', a cadeira presidencial estado-unidense. Impensável caracterização, não tanto do acesso à presidência da América, mas do acesso da América à Presidência dos destinos de todos, aquém e além mar. Os presidentes não matam para sê-lo - mas, a presidência, sim.
Os Secretários de Estado da Defesa que vamos ouvir nas próximas semanas, que o digam. "We were that close!...", repetem ambos, fascinados: a uma unha negra da guerra termonuclear, a uma unha negra de não termos chacinado civis de todas as maneiras e feitios [ah, infinitamente mais e mais impunemente em 40s, 50s e 60s do que hoje, que a memória é curta]...
... a uma distância ínfima de evitar uma guerra e perder a reeleição, de travar uma guerra e ganhar as duas. A distância entre derrota e vitória, guerra e paz, é - 'that close'.
Por isso, que as irmãs da caridade se escandalizem quando Donald Trump declara,
«sobre o líder da Coreia do Norte, que pediria à China para “se ver livre dele e fazer com que desaparecesse de uma forma qualquer e muito depressa”. Fazer desaparecer é assassinar? A sua resposta: “Para ser franco, já ouvi coisas piores.” » (Editorial do Público de 20 de Agosto)
configura um lamentável esquecimento dessa cláusula de ouro da política externa e interna, histórica e actual dos USA. Não se pode de facto perdoar a Trump que mande esfolar o coreano em vez de desembarcar com assinalável tacto na Baía dos Porcos ou de lançar uma bombazinha pós-guerra sobre Nagasáki. Também já ouvi coisas piores. E, agora que Trump se prepara talvez para desaparecer [não quero dizer: ser assassinado], é altura de o ouvir de uma vez por todas, porque o perigo não é Trump nem os loucos de Trump: o perigo é que ele diz a verdade americana que a hipocrisia americanista mente (e que os americanos americanistas seus eleitores adoram ouvir acima de tudo como um top de caramelo). A história dos Estados Unidos consiste em 'trespassar os coreanos', com Trump passou simplesmente a ser dizê-lo em simultâneo ao jantar. Já não ouvi coisas piores. A melhor e única lição que Trump tem para dar ao mundo, não é aos trumpeanos, é aos anti-trumpeanos. Porque ela é exactamente a mesma lição que o Custer de Arthur Penn tem para lhes dar. Pela sua boca falam finalmente verdade tanto Custer como Rumsfeld como McNamara (como Lyndon Johnson, como Castro, como Krushtchev, you name it...).

NOTAS:
* Eis por que razão o acordo ortográfico é imbecil: o jogo de palavras 'espetado no espetador' soaria aqui a um disparate grotesco: soaria a acordo ortográfico, precisamente.
** As auto-denominações destes e doutros povos apontam todas para um sentido fortemente centralizado e tautológico: 'os que somos assim', 'nós os que somos estes' - a saber, seres humanos.
*** É, para Arthur Penn, a última das preocupações de vai servir o autenticismo ou traí-lo, insultar ou respeitar a verdade indígena. Chegados ao ponto a que chegámos - terá pensado Penn -, a reconstituição autêntica do verdadeiro índio equivale em coeficiente de miragem e de inutilidade representacionista à representação convencional e à agressão identitária pelo clichê etnocêntrico. Que o papel de um mirífico Chefe Old Lodge Skins tenha sido atribuído ao Chefe Dan George em vez de aos astros britânicos de luxo Paul Scofield ou Sir Lawrence Olivier (pasme-se!), ou a Marlon Brando superstar, que chegaram a estar escalados para o elenco, é completamente irrelevante: o personagem a animar não é um 'índio verdadeiro' historicamente, é um veículo para pôr a verdade histórica dos 'índios' sem ser preciso 'reconstituí-la'. De resto, esse cuidado historiográfico e científico com os pormenores é uma maneira segura de desviar e subdividir a atenção do único ponto ao qual ser fiel, e perante o qual a verdade ou a falsidade históricas, a fidelidade ou infidelidade do elenco, se equivalem. Que adianta quantas penas de perú do Kentucky tem o índio que faz de índio, ou se o dialecto do século XVII foi bem reconstituído pelo Laboratório de Linguística e Fonética da Universidade de Colúmbia? O único índio bom é o índio morto, e isto é verdadeiro também para Marlon Brando.


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