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terça-feira, 9 de agosto de 2016

cfl

Cinema fora dos leões apresenta : 



Run of the Arrow  de Samuel Fuller





Sexta,    12/8

asm - auditorio soror mariana


Resumo da sessão em notas esparsas:
- Aparentemente, Samuel Fuller repete ao nível fílmico o mesmo mecanismo infame de rolo compressor homogeneizante a que assistimos, ao nível diegético [o mundo filmado nesse filme], nessa americanização da Américaque deglute todas as suas diferenças - e que é o tema-mór desta película sobre a progressiva incorporação do Sul num Norte que funciona como pars pro toto e passa a incarnar 'a América'; incorporação, em seguida, do território índio nesses Estados Unidos refundados na Guerra Civil, com o rebelde em 'fuga para a frente' a indicar a rota geográfica dessa História - O'Meara, confederado, esse desarmante Rod Steiger, puro, ingénuo, astucioso, sempre cheio de rugas interiores no rosto em todos os seus filmes (espelho devolutor das contradições exteriores do mundo, que o dilaceram por dentro), aqui sempre a fugir à frente dessa máquina até ser apanhado por ela. E até, já depois disso, ser a nossa vez: até a última tabuleta do filme disparar para nós, seus espectadores, a mesma flecha cuja corrida ('Run of the Arrow') nos compete, agora a nós, fazer: corrermos pela vida, poupados uma primeira vez pela História imperdoável, mas não uma segunda.
O rebelde já vinha, pois, a fugir desde a flecha branca que o Norte vitorioso lançou aos renegados do Sul, antes de reencontrar a mesma corrida no ritual Sioux da flecha índia. O mesmo mecanismo de repetição sucede com a bala: ela é disparada uma primeira vez, e falha, concedendo uma segunda vida (por acaso, ao vilão do filme, o Tenente de Cavalaria nortista Driscoll), apenas para vir a ser disparada uma segunda vez, e sempre a contratempo, sempre em falha, em desacerto: primeiro, configura um assassinato posterior ao fim das hostilidades militares, é uma bala suja; no final, não é uma bala militar, de inimigo, mas uma tortuosa bala que mede todo um itinerário de alianças, identificações, pertenças, 'devires-índio'...: é uma bala de misericórdia. E de reconhecimento de Si, de quem, finalmente, é, aquele que a disparou e a volta a disparar, à mesma bala, à mesma flecha branca. Bala sempre desviada, corrida de estafetas da fundação dos Estados Unidos sempre desviada, trajectória sempre desviada das pertenças dos protagonistas apanhados no turbilhão. Até a trajectória do Deus cristão fará um desvio pelas pradarias dos grandes espíritos índios...
- Ora, o dispositivo de inverosimilhanças e inautenticidades excessivaspatenteadas, é usado por Fuller a segundo grau como arma crítica: o nosso mefistofélico realizador usa o efeito do cinema digestivo para entretenimento suave do espectador médio para o tornar, por grotesco, num efeito oposto de distanciação.
As inautenticidades: todo um elenco branco a fazer de índio, desde os chefes de guerra às squaws, tudo falado no mais escorreito 'americano'. Mas esse desdém pelos nativos, segunda vez desapossados de si mesmos ao serem representados em cinema pelo seu exterminador na realidade, é na verdade uma denúncia dessa mesma usurpação: primeiro, pela sua teatralização ostensiva e risível de um branco efectivamente 'a ser índio' no meio da tribo; depois, pelo encontro paródico e burlesco com o primeiro Sioux, cujas considerações sofisticadíssimas (passando em revista tópicos de política comparada europeia, americana e indígena, oitocentista e novecentista ao mesmo tempo) fazem dele, com toda a evidência, um porta-voz, não das tribos históricas, mas do diabólico cocktail molotov dos argumento & diálogos do realizador, Fuller, que usa o filme como cadinho e sistema de retortas para experimentar laboratorialmente o 'inconsciente histórico' das feridas abertas e não fechadas de uma história que se torna evidência no nosso presente, do nosso presente que se nos torna evidenciado ao espelho dessa mesma história: e é nesse disparo da flecha da História para que nós 'a corramos' no nosso presente, que toda a genial arte intelectual e visual de Fuller consiste.
- As inverosimilhanças: estas reforçam o efeito de 360º das inautenticidades: é inverosímil o encontro com aquele primeiro batedor índio (numa figura que Jim Jarmush retomará no filme-foz de todos estes, 'Homem Morto', a do índio Nobody que conhece William Blake melhor que o branco dele homónimo, Johnny Depp - e que leva uma bala junto ao coração, também ele perseguido por um 'Run of the Bullet' até ao 'Pacífico' final...). E totalmente inverosímil que esse índio apague todo o traço de sotaque no seu americano, tal como totalmente inverosímil que o candidato-a-Sioux e irlandês O'Meara aprenda Sioux em três dias a pontos de o falar 'sem sombra de sotaque' (sendo, o 'sotaque', aqui, o índice da diferença cultural irredutível e intransponível, o selo da autenticidade ou inautenticidade, o sinal que trai a origem e indica a verdadeira pertença identitária). Essa inverosimilhança propaga-se a todo o escorreito americano falado por todos em todos os encontros, quer quando o americano fílmico representa o sioux que está a ser falado entre os da tribo, quer quando corresponde aos diálogos entre americanos efectivos (o que serão, porém, 'americanos efectivos'?...), quer quando apaga todas as diferenças nas parlamentações entre chefes índios e chefes brancos, por exemplo - resolvendo a 'questão da língua', pois, ao nível do filme, e não ao nível do mundo diegético (como o encontráramos, numa solução totalmente oposta para o mesmo delicado problema, nessoutra dança das identidades que foi O Último dos Moicanos de há duas semanas).
- A figura geométrica (e ideológica) do filme hesita entre o círculo e a linha transitiva longitudinal: entre a corrida e o regresso. O símbolo adivinhado pelo nosso designer xamã representa essa dupla dualidade: a perfeita recta que sofre entorse a meio - e a mão que ao mesmo tempo, no seu extremo, é a do arqueiro que a dispara e a do alvejado que a ela sucumbe, num ambivalente sinal de mão em oposição diametral à cabeça pontiaguda e inequívoca do projéctil. Porque o ritual do 'correr a seta' é posto pelo estruturalismo do filme como uma operação destinada a formar um grupo de transformações sintácticas portadoras de outras tantas variações semânticas: essa corrida, que significa uma sobre-extensão da hipóteses rectilinear de sobrevivênciadaquele que corre a partir da seta em diante (a partir do limite de disparo e de alvo, a partir do limite de vida, a partir do ponto em que uma seta separa o lado da morte, aquém, do lado da vida, além), essa corrida irá conhecer , p. ex., a operação 'inversão' (de papéis); o regime de interferências (o redondel que entorta a nossa seta-dístico, elaborada pelo nosso xaman visionário Bernardo Bagulho); o equivalente a-paralelo da 'corrida da bala' branca; mas, sobretudo, os seus 180º, que correspondem também a esse 'esticar-se até ao far-west' por parte do sulista em alternativa cardeal à díade fatal Norte-Sul - procurando a mediação salvadora de um Terceiro geográfico-cultural de onde ao mesmo tempo relançar essa díade e lhe escapar -, os seus 180º tornam-se 360º quando as posições de partida são 'perfazidas' graças justamente a essa 'segunda oportunidade' que procurava escapar-lhe: esta - a oportunidade dos 180º, do afastamento até ao oposto, da Diferença, a oprotunidade de escapar á execução, a oportunidade de ser operado e a bala extraída, a oportunidade de se tornar índio, a oportunidade de se tornar batedor branco -, converte-se inelutavelmente em regresso e restauração, regresso da bala ao seu Morto (o 'tu já estás morto, e andas como morto a tua morte', do filme de Jarmush e da bala junto ao coração), regresso do branco aos brancos, regresso das diferenças linguísticas ao seu Mesmo cinematográfico, regresso do sulista ao uniforme nortista enquanto batedor sioux e mais sioux que os sioux, dada a perfeitíssima e miraculosa biculturalidade e bilingualidade, numa baralhação da multipertença que surde o filme inteiro como um estrepitoso riso clandestino de Fuller a disparar em todas as direcções e a acertar simultaneamente em todos os alvos.
- duas cenas dignas de registo: a discussão teológico-política sobre a relação de cada deus com a guerra e com a paz, com a criação e com a destruição, retomada entre O'Meara e o chefe índio e entre O'Meara e o capitão de cavalaria (ex-)nortista (Brian Keith), e a paródia medonha a que Fuller submete a ingenuidade da identificação de 'cristianismo' e 'liberdade', feita pelo sulista na maior das boas-fés, a culminar na designação desopilante 'free white christian' como ideal de humanidade (e contextualmente associada ao mais desvairado morticínio). O ziguezague entre diferenças e similitudes do complexo teológico-político serve a Fuller para 'fazer a cama' ) mui cristamente) a todos os candidatos a atiradores de pedras: no jogo de Fuller, não há pedras nem delapidações, apenas a implacável verdade das setas, das balas, e das suas corridas para Oeste, encurraladas circularmente num território de coinfins, mas não sem fim (o Pacífico da 'pacificação' do grande Morto de Jarmush) por um perseguidor (chamado 'Estados Unidos') que corre sempre mais depressa do que qualquer perseguido (chamado 'América').
A outra cena é a da Mãe e do Filho. Em lado algum mais bem expressa do que aí a irreconciliação profunda, a cortar umbilicalmente mães e filhos, a cortar cordialmente os corações de cada um, que está na génese (no parto e nascimento) da Nação. Em relação a essa cena matricial (mas já antecedida pela humanidade do assassino que salva o seu assassinado e o leva para a mesa de operações e para a forja dessa bala várias vezes mítica; e já antecedida também pela renúncia a matar Grant, sempre nesse regime do micro-desvio secreto, enterrado nas profundas do Inconsciente como os cemitérios índios, e de que é feita 'This Big Nation'), o filme posiciona-se como um primeiro processo da flecha, um primeiro processamento do complexo traumático americano: e Fuller, mestre dos traumas americanos, que trata em galeria de cinema (com cumes como Shock Corridor, a exegese psiquiátrica do trauma americano, e demonstração da capacidade que a loucura tem para enlouquecer), Fuller deixa o trauma intacto, entregue ao cristianíssimo ano da Graça e do KKK de 1957, para ver o que é que acontece.
E acontece Donald Trump. Mas não sem que o cinema nos venha prevenir, com Erroll Morris e os seus dois chefes de guerra: Run of the Awe, dizia Rumsfeld. É já no fim deste querido mês de Agosto, sempre no Soror. Para olhar pelo retrovisor do passado (propriedade mágica do ecrã cinematográfico) para o que aí vem em Novembro.


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